“Arrastão eleitoral”: possibilidades para um segundo semestre crítico

*Antes de tudo, já aviso que não é um texto curto. Foi um texto escrito no final de abril e atualizado para os últimas notícias sobre as eleições. Infelizmente, o desenho tem sido cumprido a risca pelo BO no que há de pior na política.

Eu escolhi este termo, “arrastão”, porque quem vive em grandes cidades, centros, sabe que arrastão tem a ver com uma ação de banditismo em que um grupo passa assaltando os transeuntes de forma rápida e intensa. O que vivemos politicamente é na forma que o governo federal gere o país não está muito longe disto, mas o que temos vivido são movimentos mais lentos, não com a força política necessária para fazer o que se pretende agora.

O momento e a construção política feita no Congresso, com o Centrão (partidos de pouca expressão ligados à características fisiológicas e não ideológicas, muito centrados em ter ganhos econômicos em troca por apoio político) apoiando e controlando as ações do governo Bolsonaro, mostram que os riscos as eleições e a uma eventual troca de governo estão com riscos graves de não acontecer.

O governo bolsonaro está agindo em completo desespero para a manutenção do poder, por todas as vias: de um governo dito liberal, para um governo que não cumpre as premissas que o liberalismo preconiza; tem tomado atitudes em que não há um sentido político específico, que não seja a própria sobrevivência.

E está sobrevivência é norteada pelo profundo desespero de fazer todas as ações de transferência de renda mas não desistir de sua base hidrofobica, o que impacta no seu desempenho eleitoral e na sua forte rejeição junto à grande parte dos eleitores. Não há ninguém que consiga vencer com uma rejeição acima de 60%. A performance de Lula junto ao eleitorado, mesmo com uma forte rejeição, também provoca tais pavores no atual pseudo-mandatario. As pesquisas eleitorais, mesmo com o atual crescimento do Bolsonaro nas últimas divulgacoes, mostram um teto para seu crescimento, enquanto Lula, com suas articulações (de sempre) ampliam seu arco de apoio para um possível governo.

Tem restado ao Bolsonaro tensionar as instituições democráticas afim de provocar alguma ruptura ou fissura do qual se possa se aproveitar para evitar a perda da eleição, é sua saída do poder. Nisto, tem atacado o STF de uma forma cada vez mais intensa, mas o que diferencia das outras vezes, é que a instituição tem produzido decisões que atacam sua base de disseminação de informações falsas, estratégia que o ajudou a ser eleito. Nisto, os principais articuladores dessa rede foram identificados com prisões sendo feitas e desarticulação de suas organizações.

É preciso entender o que está em jogo caso ele perca a eleição: os processos de rachadimha no gabinete de dois dos seus filhos além dos processos contra o atual presidente por conta das ofensas à deputada Maria do Rosário ganhariam celeridade em suas atuais instâncias, e sem a possibilidade de intervenção da família nas investigações. Estamos falando de desmoronamento.

Por isso, temos visto um presidente cada vez mais fisiológico, embora mantenha um discurso ideológico às suas bases. Não há materialidade no discurso bolsonarista, a não ser em pautas de costumes, com forte teor conservador. Como já disse em outro texto, Bolsonaro não quer entender de inflação, mas sim do controle dos corpos e do pudor alheio, sob uma falsa perspectiva cristã. O governo de fato, ele entrega a quem lhe der apoio político para impedir um impeachment, mesmo que isto sangre os cofres públicos.

Nisto, se colocam 4 horizontes de ação ao bolsonaro mediante as possibilidades eleitorais de outubro próximo:

1) Ganhar as eleições: a sua manutenção no poder lhe garante mais 4 anos de imunidade, de seu clã e a continuidade de uma destruição paulatina não apenas das instituições e do sistema político, mas das condições econômicas da sociedade brasileira. A inflação já está na casa dos dois dígitos, e não se enxerga medidas eficazes ou planos do governo em minorar o impacto junto à populacao mais pobre. As medidas relacionadas ao aumento do auxílio Brasil e subsídio à gasolina não dão conta da forte queda do poder de compra, além de provocarem um rombo fiscal que fará suar alguém com a mínima competência em gestão de política fiscal, mas isto não seria um problema ao BO, assim como não tem sido os 4 anos de profunda perdição política. O processo de lotação dos espaços de poder, que já havia ocorrido neste primeiro mandato, ganha também força neste governo, mais pautado pelo apoio obediente ao mandatário do que conhecimento técnico da área. Nem vou entrar numa análise sob os reflexos de uma continuidade sobre nossa política externa, já que a representação brasileira virou pó sobre o governo bolsonaro.

2) Golpe antes/depois das eleições: aumentar o atrito cada vez mais com as instituições, como o TSE/STF, no sentido de imputar ilegitimidade no processo eleitoral e acionar sua base de apoio, já excessivamente armada pelos decretos sobre circulação de armas, para atacar estas instituições, mas claramente, não se restringiria a estes. Aos demais partidos, sobretudo os de esquerda, seriam os principais afetados. A manutenção da legalidade democrática talvez fosse rompida, já que as FFAA não têm parecido fazer frente aos rompantes autoritários do presidente, mas endossando essa postura. O Exército é as outras forças merecem um capítulo próprio de análise sob o seu comportamento junto à presidência da República. Portanto, um golpe talvez não fosse totalmente rechaçado por todos os setores institucionais que compõem a República.

3) Perda das eleições e respeito ao resultado: Isso só aconteceria mediante a impossibilidade de dar um golpe, com perda do apoio institucional que tem. Ou seja, só com um recuo veemente das FFAA e de controle sobre os quartéis das polícias militares. No entanto, a falta de um golpe não significa mãos atadas, já que com a continuidade de uma base política no Congresso, seria possível o governo votar pautas bombas que tornariam muito difícil o próximo governo. Estejamos atentos aos projetos de não só aumentar o gasto, mas de driblar a COnstituição (do mal fadado Teto de Gastos) e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que virou um adereço sem valor nessa novela jairlesca. O STF poderia inviabilizar algumas dessas pautas, mas a depender da quantidade de Medidas Provisórias (que passam a valer assim que votadas) e o intercurso para sua suspensão, muito do estrago pode ser feito.

4) Uma campanha terrorista: Essa possibilidade está sendo desenhada desde que o atual mandatário tomou posse. A retórica da violência tem sido constante desde as eleições de 2014, mas que neste governo ganha ares de instrumento legítimo, com um endosso oficial do presidente e de seu clã, com transbordamentos nas ruas e fazendo vítimas. A extrema proteção ao presidente Lula desde que foi solto, e sua liderança nas intenções de voto, o colocam como alvo prioritário dos grupos apoiantes do Bolsonaro, o que coloca sua vida em risco. A necessidade de um colete a prova de balas no ato da Cinelândia, (RJ) ontem (07/07), além dos ataques com bombas recheadas com fezes mostram que foi feito um teste para apavorar quem defenda o petista e seu possível governo em 2023. Infelizmente, creio que este é apenas o começo desses testes, com a frequência destes ataques se intensificando e com a intenção sendo mais do que assustar, mas causar vítimas. As armas circulantes no Brasil com o decreto presidencial podem abastecer milicias políticas, que atuariam como uma polícia coercitiva para orientação do voto, assim como para provocar violência, balbúrdia. AInda não estou contando com estes grupos armados para 2023, e como seriam debelados num governo que tende demais a negociar.

Espero sinceramente que boa parte destes delírios escritos sejam apenas divagações, mas o meu temor aponta que não. Que o risco está cada vez mais iminente não exatamente de um golpe, mas de violência difusa e exarcebada, a cada momento em que a derrota dos bolsonaro fique evidente. Um rato acuado avança contra quem o persegue. Quem politicamente está mais acuado que Bolsonaro no poder hoje?

Que passemos por este segundo semestre como heróis e heroínas, para uma possível reconstrução dessa terra arrasada que tem se tornado o Brasil neste governo. Seremos imprencindíveis para o que virá, e como testemunhas para as próximas gerações do que está sendo este descalabro social. QUe não falhemos em nossa missão de retirar este governo e de impedir que algo semelhante se aposse do poder politico novamente.

Axé pra nós.

Escrito por: Thiago Soares (Tago E. Dahoma), 30 de abril de 2022 (atualizado em 08 de julho do mesmo ano).

A coalizão se forma novamente… 2022 e a revisão das Ações Afirmativas

Não se assustem ou se surpreendam com esta nova rodada de ataques aos “identitários”, que recentemente, tem se descrito como uma crítica contundente às minorias políticas, mas em maior escala, aos negros e suas pautas políticas. Do diretor da Fundação Perseu Abramo, ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT), passando por uma crítica on passant aos movimentos “identitários” nas lives do Leonardo Attuch com o Pepe Escobar na TV247 no youtube (07/01/2022), nos debates sobre geopolítica internacional, tambem ligada ao mesmo partido, se percebe um incômodo generalizado com as provocações e contundência desses movimentos, e nisto, uma tentativa de associá-los indistintamente de uma agenda globalizada, controlada pelo neoliberalismo.

A matéria na Folha de Antônio Risério (15/01/2022), ao criticar os movimentos negros sob a acusação de um “racismo reverso” (sic), nos mostra que no arco tanto da esquerda quanto da direita (digo mais pelos posicionamentos do jornal), há uma reativação da coalizão política de ataques aos movimentos negros (MN), mas sobretudo, às agendas defendidas peloa grupos do MN. Cabe ressaltar que não é uma coalizão pactuada pelos grupos dos polos ideológicos, ou seja, não é um acordo consciente, mas sim, respostas e reação a uma pauta que, embora pouco tenha sido falada até o momento, tem seu ano decisivo agora em 2022: a revisão sobre a continuidade das ações afirmativas nas universidades públicas.

Não me parece algo fora do propósito pensar isto, haja visto como tem sido paulatino os ataques, principalmente no jornal “Folha de São Paulo”, que se num primeiro momento pretende lucrar com celeumas baseadas em ressentimentos e crítica despropositada a pretexto de se atribuirem um verniz democrático, aciona novamente o maquinário ideológico fincado no privilégio branco que sempre foi contra as AA’s e que pretende fazer o mesmo papel neste momento, requentando falsos argumentos e criando outros puramente fantasiosos, o que reacende parte da sociedade hostil e que se sente aviltada por tais políticas.

Espaços para Narlochs, Magnollis e Risérios, entre outros, sempre numa seara que está deslocada de suas áreas de atuação e que sempre constam dados falsos ou puro rancor travestido de opinião, é estar parado no tempo quando a roda do mesmo já girou, mas que o jornal e seus articulistas se recusaram a ver. No fundo, seus interesses se mostram incompatíveis com o progresso social das pessoas negras, pelo menos quando as escolhas para tal progresso não se alinhem aos definidos pelos patrões/barões que lucram com a miséria, embora a critiquem em seus jornais.

Com relação ao pólo da esquerda, se vê um duplo movimento, em que parte da crítica aos “identitários” se desenvolve como se os mesmos fossem meros títeres sob os quais não se enxerga uma nesga de protagonismo, como se toda a pauta reivindicatória estivesse atrelada a um xadrez maior da luta política nacional e internacional, da qual nós (os não brancos), fossemos os peões na mão de quem manipula as peças. Isso é desconsiderar uma pauta histórica de reivindicações, que remontam ao século XIX, da qual se pode muito bem traçar sua continuidade. Há o que se criticar, mas é interessante analisar o momento em que elas se desenham, e a qual proposição se alinham. O segundo movimento, em decorrência do primeiro, estar em crer que está movimentação identitária – estamos falando em boa parte dos casos do MN, de pautas de manutenção da vida e dignidade humana – atrapalhariam o objetivo principal na luta contra a desigualdade e contra o capitalismo. Ou seja, se faz o jogo a favor do capital por “dividir a classe trabalhadora”, por distraí-la do principal objetivo. Mas quem atribui valor a este objetivo? Quem lhe dá caráter universal e deixa as outras reivindicações como algo menor?

Nem é preciso dizer o quanto essa percepção é um contrassenso da, realidade e apenas demonstra a visão homogênea do que seria a classe trabalhadora, e como esta percepção é um reflexo cultural destes dirigentes brancos da esquerda sobre o que é o problema de fato, e sobre as prioridades do que deveria ser resolvido. Neste ranking, fica nítido que genocídio indígena e preto, as mortes exacerbadas de mulheres e pessoas trans é algo importante no ranking na medida em que podem ser capitalizadas politicamente, em momento eleitoral, como o que se aproxima. Que por termos um governo execrável, não se pode tecer críticas a quem é oposição ao governo Bolsonaro por serem “aliados”, como se o germe do ressentimento não fizesse morada nestas pessoas brancas, que se sentem ultrajadas por serem criticadas ou expostas na medida dos seus erros políticos e pessoais, ou seu ganhos com pautas relacionadas a essas minorias. Elas desconsideram as nuances do racismo, enxergando-o pura e unicamente no bolsonarismo fétido, como se a própria existência desse esgoto limpasse suas casas e consciências do que elas promovem e lutam para manter. Esta oposição calcada em críticas bem escritas e bem elaboradas não lhes tira a alcunha de racistas. A história mesmo nos mostra o quão abertos realmente os partidos de esquerda e seus dirigentes tem sido com relação à pauta racial. Mas isto não é uma crítica aos partidos de esquerda, pois no fundo, não espero sua conversão real aos interesses dos “identitários”. Só finjo espanto aos que acreditam.

O debate vai ser colocado novamente sobre a continuidade das ações afirmativas, com um lado sendo decididamente contra, como tem sido o posicionamento em editoriais, campanhas e pelos posicionamentos de seus articulistas PJ em artigos de opinião, sempre prontos a escreverem qualquer bobagem sem fundamento e verem seus escritos em destaque e temos a esquerda, principalmente por parte dos que decidem os rumos – ou seja, brancos mais velhos e toda a carga de poder hegemônico que isso traz – criticando de maneira desenxabida reivindicações legítimas das minorias politizadas, que também por conta das AA’s e sendo fruto delas, não têm a paciência, docilidade e deferencia que estes figurões esperam receber. Talvez esteja aí a gênese dessas acusações beligerantes, quando na verdade seja apenas impaciência. No ímpeto de restabelecer estas hierarquias no campo simbólico, acabam por acertar a agenda destes grupos e no caso do MN, o debate que ganhará força nas universidades públicas que adotaram as AA’s para ingresso de pessoas pobres e negras.

Estejamos atentos, porque veremos a mesma ação de antes, com a branquitude por todos os canais possíveis, tentando reestabelecer o lugar de privilégio familiar das universidades públicas, como uma herança que sempre foi, tentando expurgar os “invasores”, ou seja, nós. Não é uma questão de dados, argumentos e diálogo para convencer pois isto tem aos montes. O que está é sempre esteve em jogo é o poder, e pra isto, toda aposta contra o progresso negro é válida. Um bom ano de combate a quem lutou pelas cotas, quem é cotista e pra quem pretende usufruir ou deixar um parente usufruir. É do futuro que estamos falando, mais uma vez, como temos falado desde o pós-abolição.

Escrito por: Tago Elewa (Thiago Soares), em 20 de janeiro de 2022

O Horror ensina… a quem tem limites civilizacionais

Relembro aqui um texto que escrevi em 2018*, bem curto, em que dizia que a escolha dos brasileiros pelo Jair Bolsonaro como presidente talvez tivesse sido uma etapa em que todos, sofrendo em conjunto, poderiamos aprender com esta situação e demarcar quais seriam as linhas que jamais deveriam ser ultrapassadas novamente. Que na dor, como acontecido em diversos lugares ao longo da história humana, poderíamos pontuar um novo patamar civilizatório jamais ocorrido no pais. Eu, obviamente, estava enganado. O Brasil não é para amadores, e tem sido cada vez menos para sonhadores.

Aqueles que confiaram seu voto no Bolsonaro esperando uma recondução da crise econômica iniciada em 2014, advinda da crise política de 2013, deram com os burros n’àgua. Os mais pobres, que viram no navio furado a sua tabua de salvação, foram os que mais perderam com a total falta de gerência política e econômica que se tem história no país. Mas isto não quer dizer que os outros segmentos não tem sentido um sentido de devastação das próprias vidas e esperanças mediante um governo em que as propostas mais razoáveis, mais ordinárias, se transforma em um cabo de guerra e falta de coordenação mínima. Isto, sem falar nos casos de corrupção que atinge a todos os filhos do atual mandatário e mesmo sua esposa. O que fica patente é que a atuação presidencial tem sido cada vez mais dirigida a proteção de seus entes familiares, transformando a máquina estatal em um aparato político-jurídico de enfrentamento às mais diversas acusações.

A questão do uso da máquina pública para fins privados, ou o conhecido peculato, ganha contornos ainda mais graves diante do que tem sido a gestão federal com relação à pandemia do Covid-19. A União, na figura do presidente e dos ministros do seu entorno, tem sido a principal sabotadora dos esforços de combate ao vírus, seja com a desqualificação das vacinas como medidas de combate ao vírus, seja por meio da burocracia nos repasses de recursos de combate à pandemia aos estados e municipios, ou ainda por uma conduta pessoal do presidente de simplesmente diminuir a gravidade da doença e do número de mortos, produzir aglomerações com ataque às medidas de distanciamento social e ao uso de máscaras ou dos ataques narcísisticos sobre as medidas emergencias tomadas pelos prefeitos e governadores, frente ao colapso do sistema nacional de saúde. Ele é efetivamente um semeador de óbitos, um facilitador do estado de caos sanitário ao qual todos, sem exceção, estamos submetidos neste momento. No entanto, ainda sim cabe a pergunta: com tanto caos, mortes e inanição governamental, por que ele não é retirado do poder? Por que ele ainda tem apoio?

No meu entender, porque o país historicamente é conivente com o Horror. Podemos estar ligeiramente incomodados com sua face crua, mas a sua presença oculta sempre foi abraçada como parte do caldeirão cultural nacional. Não é apenas a escravidão que produziu uma mentalidade de subhumanidade para corpos negros, mas a leniência com a violência extrema à mulheres, povos indígenas e quilombolas, o entendimento sobre o sentido das cadeias, presídios e manicômios, a solidariedade aos outros que mais diz respeito a quem dá do que a quem recebe, aos linchamentos e enforcamentos de inocentes, com suas exposições em postes de luz. Temos sido um produto de aceitação do que deveria ser exceção como normalidade, onde este Horror à humanidade alheia tem sido uma marca subcutânea de nossas relações.

Os efeitos são nítidos: somos ao mesmo tempo anestesiados pelo excesso de violência sofrida e ao mesmo tempo somos tomados pelo sentimento de urgência da sobrevivência, que nos tira a solidariedade do campo público, a preocupação com o outro do nosso raio de ação. É uma lógica que permeia tanto ricos quanto pobres, mas por razões distintas: os primeiros, dentro da sua lógica de merecimento do melhor viver, duma idiocracia travestida de mérito, as vidas que lhes importam são as suas, pois a sua vida deve ser vivida em total liberdade, num sentido que as demais se apequenem ou sejam engolidas à sua vivência; aos últimos, escorchados pela falta de cuidado histórico, visto como peças (de carne, mecânicas, descartáveis), se recusam a abrir mão da nesga de prazer que a dura vida pode conceder. Se servem para produzir lucro durante esta pandemia, se enxergam no direito do gozo, mesmo que em ambas as condições o abraço à morte esteja mais presente. “Eu não sei se vou estar vivo amanhã”, dito por ricos e pobres, sendo o farol das ações arriscadas à própria vida e produzindo milhares de mortes diárias e muito mais dezenas de milhares de infectados.

Para pessoas pretas, o bafejo do vírus tem sido mais cruel: maior número de desempregados, mais impactados pelo fim do auxílio emergencial, maior número de mortos… As ações do presidente tem um efeito ainda mais macabro em nossas vidas e famílias, sendo que em muitos casos, por obra da aceitação das mentiras proferidas pelo mandatário. Fazendo um recorte de gênero, quantos homens pretos tomam a figura do presidente como a de um homem forte, que manda e é obedecido? Quantos reconhecem nessa falsa força (na real, muito medo) a verdade do que está sendo dito, e dilaceram a própria família, e a si mesmos, sendo as principais vítimas do Corona em 2020? Seja pela pobreza, falta de acesso e cuidado ou identificação positiva na figura do Bolsonaro, encampam o sonho de destruição presidencial das figuras descartáveis, simbolizadas numa necropolítica que “só vai ficar vivo quem merece”, quem não sucumbir à “gripezinha”. No não-dito, somos a carne que inunda os cemitérios e as covas rasas sem nome. Pois, quem é que tem que trabalhar para não morrer de fome? Quem tem de sair presencialmente para a economia continuar girando sobre nós? O brasil, nas palavras do Bolsonaro, é uma grande plantation em que o engenho deve continuar funcionando, sem pensar muito na quantidade de escravizados perdidos.

Com um cenário destes, qual é o limite? O Horror só é limite para quando enxergamos sua presença num estado de exceção, na suspensão do cotidiano e da normalidade, nos pondo em choque. Se o brasileiro se chocou alguma vez com a violência (à exceção de crianças brancas), ele a perdeu na memória em algum momento. Mas ouso dizer que a configuração da mentalidade brasileira, por baixa da alegria festiva, sempre teve a vivência do Horror como parte, companheiro de jornada, até para que se permitisse viver de maneira naturalizada. Às elites que há 4 gerações atrás mandavam caçar “negrinhos fujões” e açoitá-los, vêem no presidente a evocação dessa natureza senhorial, e a isto, nenhum vírus vale o preço.. Ainda mais se cumprir com o papel de higienização sóciorracial.

Paremos de buscar apenas nas fake news o descalabro civilizacional que temos vivido. O traço histórico-cultural que permitiu uma figura como o bolsonaro nos leva às caravelas, e a sua possível saída do poder, pode estancar uma sangria intensa, mas é preciso se perguntar o que queremos salvar. Se o DNA cultural brasileiro carrega tanto de bolsonaro, o que se coloca como limite civilizacional à humanidade vivenciada aqui?

A falta de empatia e de solidariedade humanizada não nasceu com o Bolsonaro, mas encerra nele sua maior expressão. Ou se busca este novo horizonte para as vidas no brasil – todas elas – ou a repetição desse moedor de carne é questão de tempo. E não precisaremos de uma pandemia para enxergar.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 21 de março de 2020.

Nota(*): Texto de 2018 escrito aqui no blog:
https://papiroindomito.com/2018/10/05/o-horror-tambem-educa/

A morte como sombra: um relato de um homem negro (o meu)

De cara, perdoem-me o texto longo. Mas relatos assim não me são tão frequentes.

Já escrevi muitos textos indignados e sufocantes sobre as mortes de pessoas negras. As violências que nos atingem e o vácuo da perda das vidas naqueles que ficaram. Do terrorismo estatal e urbano que nos assola. No entanto, esse me parece mais truncado e difícil, pois é um relato desses efeitos em mim, na minha maneira de enxergar o mundo e me posicionar nele. Tenho tentado falar sobre este medo da morte faz algum tempo, mas sempre sinto as barreiras de falar algo tão onipresente ao longo da vida de pessoas parecidas como eu.

Diante de tantas vidas perdidas mostradas nos jornais impressos, em programas de televisão, de conhecidos de infância e conhecidos, quais os efeitos em mim? Uma retração em me sentir bem nas ruas em determinadas horas.. Durante a infância um medo da madrugada, como se a mesma fosse um escoadouro de vidas, por mortes violentas. Portanto, a casa se torna a fortaleza impenetrável, o espaço seguro contra a insegurança da porta pra fora.

Há também algo cruel para quem gosta de se sentir livre: uma desconfiança de estar nas ruas. As ruas, o espaço público passa a ser enxergado não como o lugar de encontro, da troca, mas do choque e da tensão. Há alguns anos eu percebi que a rua era apenas um espaço de trânsito para lugares fechados, sempre de um para outro. Me peguei pensando nesta energia de Èṣù nas ruas, e o quanto que me privo por medo da maldade chegar antes de sua proteção. Olhando as esquinas e as pessoas nelas como alvos, a aglomeração masculina nos botecos também. Espaços enxergados como a intersecção da raça com a pobreza como elementos do gozo violento. De quantas conversas me provei, de risadas e desabafos emotivos? Também dos conflitos e riscos..

A tensão dos encontros desconhecidos, o auto-controle diante de situações surpresas. Uma certa desconfiança no inesperado, porque um corpo negro masculino gera tensão nos outros, um medo que gera ódio, que gera mortes. Fico pensando nos cálculos de quem decide assaltar um homem negro, no que está disposto a fazer numa atitude inesperada, no susto. Os estereótipos de violência impostos a nós agindo para que sejamos mortos sem nem esboçar reação. Serve para pensar assalto, mas e as abordagens policiais? E as confusões com sacos de pipoca, furadeira? E aqueles que morreram por esperar o delivery ou voltando pra casa? Não é só o descalabro da morte, mas o seu impacto social em mim, em nós, que nos vemos sujeitos às mesmas ações?

Ano passado, numa fala sobre estratégias de sobrevivência, percebi que ao voltar tarde pra casa, eu sempre caminhava com livros nas mãos até estar dentro de casa. Depois, tive a certeza inconsciente que o livro era um escudo em minha mente de possíveis agressões, que fariam as pessoas associarem a mim, por meio do livro, uma boa conduta, a possibilidade ao menos da dúvida, da explicação sobre qualquer coisa imputada.

O desgaste de um auto-controle que é sempre chance, nunca é certeza. E que sempre parece chance perdida quando alguém parecido comigo é morto. Que num tem poção mágica pro racismo letal aos homens negros. Que há uma roleta-russa com nossas vidas das quais por hoje, por um milagre dos deuses, eu escapei hoje, mas que posso não escapar amanhã.

Não é só a violência armada. É a velhice que parece que perdeu o nosso rastro, ou a gente que a perdeu nas nossas andanças. De quando olho para os que estão de cabelos brancos, estão como, chegam até onde? Ver homens negros idosos inteiros em sua velhice, que possam ser espelhos de integridade, de cuidado de si. Um sonho? Como vencer o inferno sem os arranhões graves, sem os sintomas no corpo e na mente? A deterioração em vida, mesmo sob uma capa aparentemente bem cuidada. Quem pode dizer que viu o avô chegar aos 80?

Diante disso, o que a morte significa pra quem ficou até agora? O que a morte significa pra mim? Uma sombra.. Que bafeja seu hálito de maneira constante a lembrar a sua presença, causando um medo onipresente. Nisto, como este medo atravessa meus planos de futuro? Da maneira mais cruel, porque dá uma ideia de perenidade, de algo fugaz. Traçando planos e vendo o que posso deixar ajeitado para a família que agora formei caso não esteja mais presente. Como um testamento mental sempre pronto. Eu teimo em traçar um futuro, mas vivo pensando em quem nunca foi incentivado a tal ou viu nas evidências do ódio cotidiano que não há um futuro pra si, como não houve pros seus mais velhos e não terá pros que vierem depois. Futuro (como investimento, como preparo) é ao mesmo tempo uma esperança e um certo tipo de legado que se recebe. O que temos recebido? O que tenho recebido que me leva a caminhar, ora com pernas firmes, ora não, o futuro que se avizinha, em cada véu da noite e alvorecer que rompe? Às vezes vejo como um milagre.

O que atenua o inferno é a minha fé, é Orí em atenção permanente mesmo nun desgaste monstro pra não ser pego desprevenido, e Èṣù é Ògún, primordialmente. É Capuera que faz de mim e de meu corpo morada fértil pra nutrição de corpo e alma, além de ensino de sobreviventes de séculos antes de minha existência neste plano. A família criada, de sangue e expandida, que evocam o que há de melhor em mim. São Neles e nas Forças que atenuo esse oceano de medo, querendo transformar em lago, em botar borda pra fazer meus planos de vida. Pra me achar potente pra construir e crescer, apesar dos riscos. Os custos são altos em todos os lados, mas o de nada fazer é ainda mais danoso.

Terra sem plantio pode até dar algo, mas não o que você precisa.

As alegrias destas escolhas, dos avanços, indicam pra mim que tenho acertado apesar.. Sempre o apesar no fundo da mente, do nó da garganta. Mas assim como outros antes de mim fizeram, brincar com o medo pra que o seu frio não tire o calor da vida; que a morte há de chegar em um momento, mas que sempre que possível, eu possa negociar a minha ida cada vez mais a frente, cada vez mais tarde.. Para que eu ouse Viver além do que os meus mais velhos já viveram e possa ver o fruto de minhas escolhas progredindo, desenvolvendo.

Pensei o meu relato, mas sei que é só pela via colaborativa e organizada, por nossa vida, isso será atingido. Por nossas vidas, primariamente, pela dignidade do nosso viver. Meus caminhos individuais significam muito pouco a um igual a mim, com os mesmos riscos. Não existem soluções individuais para o terror coletivo, a não ser ilusão. Dos nossos medos conjuntos é preciso transformar em uma ação de valorização de nossa vida, e de um efetivo combate às nossas mortes. Que possamos produzir o nosso direito efetivo a uma vida com o medo normal da morte, não este tão colado em nossas costas.

Um direito negado, que pretendo até o fim tentar exercer.

A morte não vai me definir, tampouco o medo!

“Êeê
O medo da morte não vai me vencer!”

Por: Tago Elewa (Thiago Soares), 13 de novembro de 2020.

Rumo aos 100 mil mortos… Ou simplesmente, uma batalha perdida

Uma pergunta cabível neste momento em que o país está preste a bater a casa das 100 mil mortes oficiais. Perguntem-se: houve um real embate contra o vírus? Se foi travada uma guerra, ela foi relâmpago e a parte de quem preza pelas vidas, perdeu. As discussões por parte dos governos estaduais, que no início da pandemia lançaram esforços para o enfrentamento à dispersão do vírus, com isolamentos e quarentenas, hoje flertam com aberturas de comércio e volta gradual da atividade econômica, mesmo diante de um quadro de aumento de infectados e mortes em seus territórios.

Fazendo o retrospecto de apenas alguns meses, o choque de um vírus que estava fazendo estrago na europa e na china, com centenas de mortes diárias e caos social, causou pânico quando o primeiro caso foi noticiado no brasil, no começo do ano. Na intenção de conter a propagação, várias medidas foram tomadas, com comércios e escolas fechadas e as máscaras e o álcool em gel fazendo parte do nosso cotidiano como se fossem peças íntimas. A tentativa de se manter a si e aos familiares seguros fez com que o apoio ao isolamento fosse muito alto, embora não tenha alcançado 70% em nenhum lugar do país. As necessidades e as políticas de transferência de renda não alcançaram os que deveriam ser resguardados. A rua continuou a ser o espaço de busca do pão, mesmo quando deserta.

O “faz-de-conta-que-preside” sempre se colocou contra as medidas de resguardo e cuidado, seja diminuindo as possíveis consequências que o vírus causaria,  ou mais tarde, não gastando todos os recursos disponíveis para melhor aparelhar as estruturas estaduais e municipais com máquinas e insumos. O governo federal gastou apenas 29,3% dos recursos orçamentários liberados para o combate ao Covid-19 [1]. Ou seja, é um governo que não leva a sério a gravidade do problema, negando sua gravidade e com estímulos explícitos de retorno das atividades, com questionamentos e desconfianças à Organização Mundial de Saúde (OMS) e, quando indagado sobre o número crescente de mortos, dá de ombros, como se não fosse uma responsabilidade sua a resolver. A maior preocupação do presidente B.O. tem sido andar de jet-sky enquanto faltam remédios para as pessoas internadas na UTI. Temos sofrido o impacto dessa aposta no caos, com o Brasil sendo o 2º país com maior número de infectados e mortos, atrás apenas dos Estados Unidos, capitaneado por quem também não levou a Covid-19 a sério, e que até hoje não a combate com o rigor necessário.

As dificuldades de se manter em casa, seja por questões ideológicas, por conta do trabalho ou mesmo para sacar o auxílio emergencial, tem mostrado que a curva de infecção do vírus no Brasil faz um ângulo que não se assemelha com quase nenhum país, dentre 150 analisados [2]. Uma curva que não cai, onde o número de mortes continuam exorbitantes, num ritmo que parece ascendente. Do terror inicial e do medo, hoje só há nostalgia. A menção à morte por tanto tempo fez com que o perigo do vírus se tornasse algo como a violência: se você tiver sorte, você sai ileso.  Há uma sensação de anestesia, de entorpecimento diante das covas, dos choros, das máscaras… Um cansaço de uma mudança tão brusca na rotina, nos encontros, na vida cotidiana, o que enseja uma busca pela “normalidade”, pelo apesar de… Um auto-engano, uma ilusão da vacina mágica que retira todos os perigos já amanhã. Nisto, como num despertar de um sonho ruim, volta-se aos trabalhos, às atividades, ao burburinho dos movimentos, e a marcha fúnebre oficial está prestes a contar 100 mil corpos..

Destes 100 mil, quantos corpos negros? Dados do SUS (Sistema Único de Saúde) mostram que a vítima padrão da Covid-19 é homem, negro e pobre[3]. O desespero inicial com relação ao vírus tem também um recorte de raça e classe. Eram pessoas brancas de classe média e alta que estavam sendo infectadas e morrendo. Na medida em que se estabiliza o número de infectados e mortes e o vírus adentra as periferias brasileiras, muito dos temores se esvaem. Isso também não deixa de ser uma forma como o racismo e seu desapreço pela vida negra atua no brasil num momento histórico pelo qual estamos passando. Estamos falando de uma letalidade que chega a 90% em locais pobres[4]. Esta taxa faz com que a Covid-19 se pareça com uma sentença de morte às pessoas em vulnerabilidade social, sem nenhum outro recurso senão à saúde pública.

A contagem regressiva para os 100 mil mortos tem um quê de macabro. Que esconde a quantidade enorme de subnotificações, de mortes contadas como pneumonia ou Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Passamos dos 100 mil há muito tempo, provavelmente há alguns meses atrás. Creio que o olhar estatístico sobre esse número gigante de vidas ceifadas seja uma maneira de mostrar quão funda é essa cova em que todos fomos colocados, e que parece ainda afundar. Que estas mortes não sejam apenas dados, mesmo sabendo que o caráter nacional é moldado em acreditar que se a morte não for de pessoas brancas, é uma morte cabível, seja em qual contexto for.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 03 de agosto de 2020.

Referências:

[1]
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2020/06/29/interna-brasil,867800/ministerio-da-saude-so-gastou-29-3-de-recursos-para-combater-covid-19.shtml ;

[2] https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/06/04/interna_nacional,1153866/brasil-completa-100-dias-de-covid-19-com-maior-curva-ascendente-no-mun.shtml ;

[3]
https://cnts.org.br/noticias/vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-e-homem-pobre-e-negro/ ;

[4]
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/covid-19-taxa-de-letalidade-e-ate-18-vezes-mais-alta-na-periferia-1.2972563;

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/em-uti-de-hospital-da-zona-leste-de-sp-maioria-nao-sobrevive-a-covid.shtml

 

 

 

Ariel e a ousadia do amanhã

Essa é a minha primeira resenha aqui no blog. Resolvi começar pelo “Livro Preto de Ariel”, de Hamilton Borges, pelo vigor da obra e por sua importância, no que aponta como literatura e como política. Fora a minha intensidade na leitura. Simbora!

De imediato, diria que O “Livro Preto de Ariel” é uma realidade coletiva, das nossas agruras e nossos sonhos de suplantação do racismo e da violência estatal. Algo que esvazia a noção presente de cidade-túmulo, por um projeto de insurreição silenciosa, subterrânea que irrompe e faz ruir o ponto “necrálgico” dos sistemas de morte para conferir poder a quem é vitimado, é alvo e mira desse aparelho genocida.

Hamilton Borges em cada capítulo desdobra a história de Ariel e de seus personagens de forma muito rica, com um dinamismo que faz com que o livro, mesmo sendo de certa forma um relato crível das atrocidades encampadas e patrocinadas pelo terror policial em Salvador (Nordeste de Amaralina), não perde o fio da meada de uma história ficcional. Acaba por adensar o romance ficcional ao mostrar os personagens e suas relações de maneira diversa, como a realidade realmente se/nos apresenta.

Em alguns momentos, o fio da meada entre ficção e realidade se confunde, como nas invasões policiais presentes no livro: a invasão ao Nordeste de Amaralina nos mostra o terror dos moradores, o desespero que precede o caos, escrito de maneira magistral pelo autor. A outra é tudo o que envolve o cárcere de Ariel no presídio estadual Lemos Brito.

Aliás, a descrição dos presídios não deixa de ser uma denuncia ao sucateamento das cadeias públicas com toda a sorte de condição miserável e desumana, ao ambiente estéril das parcerias público-privadas, com sua noção de controle inumana, com efeitos psicológicos nos presos. O processo de definhamento mental e dos choques contra essa condição nos traz uma noção bem acachapante de como por um lado a noção do preso como um ser inumano orienta a lógica do sistema público carcerário, e na segunda, como o preso é apenas cifrão para um grande negócio que necessita sempre de presos pra auferir lucro aos grandes empresários, geralmente ligados ao sistema público carcerário.

No entanto, se o livro ficasse apenas no terror policial, na corrupção das relações de poder e no sofrimento dos personagens, seria um panfleto, com todo o direito de sê-lo. Contudo, vai além ao trazer uma narrativa que coloca nesse manancial de dor, muito amor: amor fraterno, parental, de casais, pelo conhecimento através da alfabetização e do que os livros proporcionam.. Amor por um futuro que virá, rabiscado em, letras garrafais de esperança. Uma força vinda de Mulheres Pretas que são coluna de suas comunidades, esteio de suas famílias e barreiras ideológicas e corporais contra as forças policiais e institucionais invasoras. Com isto, se torna complexo e uma obra única na união de temas que nos são tão caros: a denúncia é combate ao ódio destilado às nossas vidas e o amor a nós como potência transformadora.

Ariel é um anjo sem asas, de cara preta, que anuncia o fim dos desmandos, que esquadrinha a cena atual e projeta o nosso revide futuro. Tão nas quebradinhas e presídios, nos bares e nas associações comunitárias… Está em cada louco e louca que ousa uma vida digna e próspera pro povo preto nesse calabouço, que há de virar outra coisa, outro mundo, outra história para vivermos. Realmente vivermos.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 26 de julho de 2020.

Brasilidade e culturas de matriz afro: o que atenua o racismo?

Ce já se ligou que tudo que o povo preto fez culturalmente no brasil foi pra se manter vivo? Samba, Capuêra, Reizado, Batuques e várias outras manifestações. Estes fragmentos de Áfrika foram elementos de salvação mental e psíquica ao nosso sofrimento deste lado do Atlântico.

Lógico, desenvolvemos muito mais coisas, tantas outras com elementos nativos e com os algozes, nessa alquimia tão estranha. O fragmento que nos deu e dá suporte combatido de várias formas, violentado, e a gente no suporte. A dita “brasilidade” sendo um trator do elemento cultural e humano preto. Se por ora aceitou alguns traços de nossa africanidade como algo seu (não sem transformação, sem mastigação e cuspe do que é nosso mais genuíno), para as novas manifestações, o mesmo ciclo de horrores já passados. O funk é assim, o brega.. e nisto os nossos corpos, a nossa presença sob ataque.

Cabe aqui ressaltar o que quero dizer com brasilidade. A construção de nação no brasil é muito recente, sendo de fato uma preocupação das elites brasileiras a partir dos anos 1910, com um esforço de construção a partir das décadas seguintes. Neste olhar de construção nacional, os elementos eugenistas estiveram muito presentes, o que realmente nos tirava do objetivo, já que éramos “atrasados, primitivos” e logo, um impedimento ao brasil se tornar uma potência como os países europeus. A partir de Vargas e um esforço pra construir uma cultura nacional “legítima”, os elementos afro foram aglutinados como elementos constituintes, embora nossa presença física não fosse tão desejável assim. Vale lembrar que a Constituição de 1934 (Vargas) constava a eugenia como objetivo de melhora do povo brasileiro.

Por mais que no contexto cultural, a brasilidade nos tenha tragado, no que podemos chamar que “só existe uma cultura nacional porque nós estamos aqui”, no contexto do poder, no contexto de vida e morte nas relações vivenciadas secularmente, das instituições criadas e que sustentam esse edifício, somos nada. Nem mesmo o zelador. Talvez apenas os blocos de sustentação do edifício.

Pensar o brasil, como parte dessa teia, tem me sido cada vez mais ofensivo e cruel. Porque a brasilidade, em sua face prática, me quer como sombra do passado, me quer como uma cultura-fantasma, de algo que “foi, fôra” e agora não é mais.

A cultura de resistir é vital pra nós, mas tem os seus limites. Ser sempre resposta a algo impede os passos da pergunta, o campo criativo e inovador da questão. O que quero dizer é que pode estar a resiliência, mas não vitória sobre o problema.

Em suma, responder enfaticamente ao racismo e seus desdobramentos é só um dos enfrentamentos. Pra vencer o racismo, precisamos saber o que é um mundo/local/sociedade sem racismo, e isto, o brasil e a brasilidade jamais vão poder nos dar.

A resposta talvez esteja no aprofundamento destes fragmentos afrikanos, em sua raiz, que nos tem salvado há séculos do extermínio, e podem nos ser possibilidades para o verdadeiro mundo que queremos viver e legar.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 18 de junho de 2020.

E o Movimento Negro hoje? Cenários e possíveis caminhos

O declínio do MN enquanto movimentos sociais de impacto junto a sociedade e logo, ao poder público, foi acontecendo ao longo dos anos, sobretudo com a derrocada do PT. Pensando atualmente, organizações como MNU (Movimento Negro Unificado) e Unegro, para dizer das que tiveram maior relevância no pós-1978, existem, mas de qual forma? Quem, destas novas gerações mais influenciadas digitalmente, já ouviu falar destas instituições e de seus trabalhos?

Mas essa foi uma lógica geral a todos os movimentos? Na minha análise, não. O movimento feminista e lgtqia+ ganharam destaque no pós-2013, logo após a retração da pauta do movimento negro. Isto não quer dizer que não havia movimentações intensas destas pautas por mudanças estruturais no país. A aprovação da Lei Maria da Penha, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de anencéfalos (2012) e a união estável homoafetiva (2011), ambas julgadas pelo STF com tremendo debate no país, são provas do quanto as organizações sob estas bandeiras estavam fortalecidos no debate. Mas ao contrário do MN, estas foram ações que determinaram um empuxo das organizações e dos movimentos como um todo.

Uma explicação plausível seria da capacidade de financiamento das organizações que defendem pautas feministas e das relações homoafetivas serem mais independentes do governo, tendo captação financeira inclusive de pessoas físicas e de organismos internacionais e multilaterais. Uma capilaridade social com indivíduos de maior poder aquisitivo, com uma retórica muito assentada nas redes sociais, não necessariamente ligadas a grupos/coletivos/organizações também foram aspectos de ganho de espaço na agenda pública.

A atomização das pautas políticas teve impactos em todos os movimentos, de vários espectros políticos, mas saiu na frente quem teve a condição de enxergar essa transição assim como capitalizá-la aos seus interesses, individuais ou coletivos. O “Ninguém me representa” como caldo político disseminou um conjunto de vozes não ouvidas nesta nova arena social, mas não houve uma guinada discursiva, apenas ampliação das vozes.

Esta ascensão das pautas politicamente minorizadas não foi o fim do ativismo para determinados segmentos negros, que sob o campo teórico da interseccionalidade, conseguiu se deslocar dentro destes espaços político-ideológicos em destaque, e defender uma agenda negra sob este viés. O que quero dizer é que os movimentos tanto feminista quanto lgbtqia+ absorveram parte de uma velha guarda, e se tornou paradigma político para uma leva de novos indivíduos, principalmente para os que tiveram contato com as pautas políticas anti-machistas, homofóbicas e racistas por meio da internet, das interações nas plataformas digitais.

É inclusive, por meio delas, que uma pauta sensível da população negra se mantém viva, interagindo, mas envolta em uma gama de informação muito dispersa. As redes não são geridas eficazmente por organizações, mas por indivíduos, que traduzem em suas mídias muitos dos seus desejos e apontamentos. Um paradoxo interessante é que hoje se fala muito mais de racismo na internet como uma pauta de denúncia, mas nossa capacidade de sustentar ações articuladas decaiu muito e isto está intimamente ligado a retração das organizações antirracistas. Nisto nos perguntamos: aos em destaque nas redes sociais são o quê? Militante? Ativista? Entusiasta?

Depende de como fazem o uso de seu capital digital, de como engajam a atenção que recebem para pautas que realmente beneficiem o coletivo. Mas isto ainda é um debate posterior, pois há uma discussão prévia que precisamos fazer.

Podemos dizer que o passado do legado de luta antirracista (luta, não apenas intenções) é muito complicado, o que causa buracos geracionais tremendos e atraso no avanço das discussões. Não sabemos passar o bastão, formar ou educar novos militantes. Isso causa um déficit absurdo, pois boa parte dos ativistas da causa Negra hoje, teve um processo de aprendizagem e entendimento da questão racial por conta própria, muitas vezes cometendo os mesmos erros que os mais velhos cometeram. Por isso, se os mais velhos, geralmente de organizações, não formam, quem forma os mais novos?

Simples: quem tem o capital simbólico e faz o investimento necessário pra influir nestas mentes.  As plataformas digitais são um campo minado e também dourado para atrair talentos e também para dimensionar pautas. É, de saída, um espaço de influência branca com uma capacidade de direcionar ações, ideias e pensamentos de pessoas pretas, assim como a tv fez conosco e com nossos pais. Vemos a quantidade enorme de novos influencers com capacidade de arregimentar milhões de jovens, dentre os quais, os de nossas comunidades, irmãos, primas, sobrinhas.. A terem uma percepção equivocada sobre a própria realidade e a partir disso, agirem contra seus próprios interesses. A indivíduos que a partir do que lhes é pago ou do assunto (ou falta dele) em voga, podem marcar uma guinada profunda no pensamento crítico de pessoas muito jovens. Estamos vendo isto, o que aumenta o fosso entre as gerações.

Há pessoas pretas avançando nestes espaços, com mais dificuldade, mas colocando pautas de interesse coletivo negro junto aos seu público. Mas a pergunta que fica é: quanto de suas elaborações e provocações são coletivas? É possível ter interesse coletivo, mas é o nome destas pessoas que viram marcas, portanto, são dois elementos em jogo, na arena. Como separar, ou melhor, aliar o interesse pessoal e coletivo?

Acho que a resposta está nas pontes entre os mais velhos e mais novos. O alcance que as redes projetam nos mais novos e versáteis com o mundo tecnológico sendo usado nos trabalhos de fôlego, contínuo de quem fez e faz muito pelo nosso povo, mas que se encontra emudecido num mundo cada vez mais binário, e com dificuldades de espalhar as sementes do seu trabalho para além da área em que atua. Há várias vertentes muito bem vindas trazendo elementos de Afrika e como proposta de agir e pensar, além de contribuições de nossos mais velhos que pensaram possíveis caminhos pra mudança da nossa realidade, oxigenando assim o ambiente e propondo novos olhares pra este brasil. Trazendo Outras configurações políticas também se rearticulam em pequenas organizações para dar sua contribuição à luta coletiva.

Talvez dê conta da falsa morte do Movimento Negro. Este não vai morrer, não pode. Ágatha, Cláudia, João Pedro, Iago, Amarildo e tantas e tantos precisam que suas mortes não sejam número frio de repartição pública, de falas e escritos digitais sem maiores consequências aos perpetradores destes assassinatos. O MN e suas organizações são a plataforma de eco e pressão para o enfrentamento dessas questões e dezenas de outras que nos atravessam. Porém, é preciso reformular-se. Estes novos tempos de ódio assim o exigem, assim como esta geração vindoura mais conectada, mais individual e com necessidade de ser ensinada assim como ensinar.

O desafio tá lançado para uma nova configuração do Movimento Negro brasileiro. O ponto é: quem vai se sentar pra ouvir quem? Os dados estão sendo jogados e o custo da inaptidão tem nos custado muito caro. Em tempo, sangue e corpos.

Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 03 de junho de 2020.

O movimento Negro morreu? O atual declínio…

Continuando…

No entanto, a vitória no STF foi também o ponto final de uma era. No sentido de uma luta nacional conjunta do movimento negro, esse é o marco do fim, em que os movimentos negros não conseguiram manter uma agenda uníssona e passam a ter ações fragmentadas.

Mas por que não houve continuidade em outras pautas tão importantes quanto esta? Há alguns pontos a serem considerados

Fora a falta de uma pauta unificadora, o atrelamento muito forte de vários setores importantes (PT) do movimento negro aos partidos de esquerda, sobretudo ao Partido dos Trabalhadores, fez com que na derrocada deste último, isso rebatesse em esferas consideráveis dos militantes e setores que militavam racialmente via partido. Os próprios ataques aos quais o PT e a esquerda em geral sofreram pós jornadas de 2013 e o surgimento de uma pauta ultraconservadora mudaram o locus de combate e investimento, antes mais diversa e plural para uma defesa da existência da esquerda enquanto um projeto viável de sociedade. As forças sociais ancoradas no projeto de esquerda se enganaram na sua manutenção no poder e no combate a sua vilanização por parte das inúmeras vozes da direita que ganharam corpo e intensidade, até o seu ponto mais alto, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.

Não que os grupos e atores negros identificados com os partidos de esquerda ou satelizando esse campo ideológico tivessem extrema força ou grande influência durante os mandatos petistas. A escolha das organizações e dos indíviduos do MN de ingressarem nos partidos políticos para fazerem a luta racial nestes espaços e na disputa pelo Estado levaram por exemplo, Abdias do Nascimento a ser deputado federal e senador e vários outros, como por exemplo, Benedita da Silva, que foi deputada federal por vários mandatos e governadora do RJ pelo PT. A chegada de um partido popular e de massas ao governo federal foi visto como um possível divisor de águas na situação negra do país.

No entanto, ao longo dos governos petistas, a força dos setores negros foram sendo reduzidas, a ponto de no mandato de Dilma Rousseff, nenhuma terra quilombola ter sido titulada e demarcada e o orçamento da SEPPIR no governo petista ter sido uma pequena fração do que foi no começo dos anos de governo lulista.

titulação de terras quilombolas
Olhar a matéria em: http://cpisp.org.br/terras-quilombolas-governo-dilma-titula-apenas-nove-terras-todas-parcialmente/legenda

Mas mesmo sob tais condições, as possibilidades de negociação da pauta racial nos governos petistas possibilitaram uma intermediação intensa porém custosa ao movimento negro, já que no sentido da viabilização das pautas de interesse do povo preto, muitos militantes foram foram “pra dentro” do governo, ser gestão, o que debilitou as organizações e coletivos dos seus quadros mais preparados e blindou os governos de reivindicações mais assíduas e radicais.

No que a administração petista começou a desmoronar, os quadros periféricos foram os primeiros a sentir os impactos. Os coletivos e organizações foram desmobilizados neste processo, do qual sentimos hoje o efeito: estamos num estagio entorpecido, pois fazemos coro contra a ultradireita mas não sabemos barganhar apoio de uma esquerda enfraquecida que nos tem politicamente como trunfo, como massa, e mesmo com as atuais críticas, como apoio aos seus interesses de poder. Qual é a via negra entre o binômio de poder colocado hoje?

Qual a proposta preta para o caos que estamos observando nessa pandemia? Quais as nossas intersecções com outros setores não urbanos, como os pretos da área rural, os quilombos? Do que falamos hoje e quais os públicos que pretendemos atingir?

Essa retração do movimento negro no cenário político e social tem outros pilares, que pretendo explicitar na parte 3 desse não-tão pequeno artigo.

O Movimento Negro morreu? A recente ascensão..

De começo, quero dizer que o título é uma provocação, e já digo logo que o movimento negro (entendido de maneira plural e que propõe, induz e produz ações políticas ou não no combate a desigualdade racial) não está morto. No entanto, é preciso entender como os movimentos sociais negros passaram de principal ator político nós anos 2000 para o que ele é atualmente, com uma fragmentação e invisibilidade que lembra alguns períodos sombrios da história política nacional.

Esse processo de ascensão e queda do movimento negro no cenário político e social obedece de certa forma a agenda política nacional. Apareceu de maneira forte no período abolicionista, por meio de jornais; apareceu de maneira mais intensa a partir de 1930, com a Frente Negra Brasileira e Teatro Experimental do Negro e desponta novamente a partir de 1978 com a criação do MNU e a década dos 100 anos da abolição. Isto não quer dizer que a luta contra o racismo e a desigualdade racial parou durante os períodos não citados, mas não tiveram a mesma relevância, se levarmos em consideração a crítica e a proposição de alteração das condições do povo negro junto ao Estado e sociedade brasileira.

O mais recente momento podemos considerar como uma continuidade do último. A partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, a luta por ações afirmativas tomaram corpo junto ao conjunto de organizações de combate as desigualdades raciais, unificando-as em uma pauta no intuito de influenciar o Estado a adotar políticas públicas. Num primeiro momento, as ações foram aprovadas nos concursos internos do Ministerio da Justiça em 1997, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Após esse primeiro movimento e a Conferência de DURBAN em 2001, as ações afirmativas ganham destaque nacional ao serem aprovadas em diversas universidades públicas. A entrada de pessoas negras e pobres nestes espaços de privilégio e prestigiu acendeu o debate acalorado na sociedade brasileira que durou mais de uma década, que no plano imediato estava a validade oou não das cotas ou reservas de vagas, mas que no contexto mais estrutural estava os fundamentos profundamente desiguais do povo preto no brasil.

Os questionamentos derivados dessas discussões foram importantes para alterar a percepção dos brasileiros sobre si mesmos, mas não sem tensões e conflitos. Porém, no tensionamento do diálogo e negociação destas políticas estavam centenas, senão milhares de grupos/coletivos/organizações dos movimentos negros fazendo este debate onde quer que ele fosse necessário, reagindo ou colocando em pauta para alterar o status quo.

Mais de 10 anos de políticas de ações afirmativas em centenas de instituições públicas, o ponto político mais alto nessa Seara foi a confirmação da legalidade das cotas no Supremo Tribunal Federal em 2012, reafirmando a fala e as ações ocorridas no transcurso desse tempo em favor da entrada de pretos e pobres nas universidades públicas. O debate fora vencido politicamente e juridicamente pelos setores do MN frente aos antagonistas, aos detratores. Todavia, por que o gosto amargo? Na segunda parte, tento explicar.

Filosofia como base cultural… Quais os nossos caminhos?

Eu sempre acho que nos falta Filosofia, como campo mesmo. Digo no sentido de termos um olhar mais para o que ela é e sua importância na nossa vida. E quando digo isto, não estou falando do sentido dado pelos gregos em seu plágio, mas de uma maneira geral, em que cada conjunto cultural de seres humanos tem sua percepção filosófica do mundo. E é exatamente esta aplicação que serve como lente de entendimento da realidade em que vivemos. Se pensarmos que a filosofia é uma lógica (também de base cultural), vemos a extensão do seu alcance em áreas que parecem não ter nada a ver com filosofia, como matemática, biologia, etc. Isto exemplifica porque no ocidente os filósofos não caem em desuso, sendo seus livros reeditados de maneira contumaz. O uso sistemático de suas assunções reforça a base lógica do pensamento ocidental no campo crítico e científico.

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Acervo da Biblioteca de Tumbuktu

Não que não tenhamos uma nossa, mas eu penso em como a situação está colocada para o povo preto, se temos um fio condutor cognitivo capaz de nos dar um direcionamento cultural. As pessoas podem me perguntar porque não tanto a ação, o símbolo de ruptura. Na verdade, estes também, mas o que é símbolo sem um significado forte, enraizado? É árvore que tomba com qualquer vento mais intenso.

Sem um fundamento filosófico-cultural, qualquer atrativo nos leva. Por isso, os trabalhos dos professores Uã Flor Do Nascimento*, Katiúscia Ribeiro** e Renato Nogueira*** ajuda e ampliam as condições de solidez de um campo que fortalece as novas direções e narrativas na contribuição de novas relações no mundo. Seus trabalhos de transcrição de filósofos e filosofas afrikanos, pesquisar seus trabalhos e/ou culturas e o foco em Khemet  (Antigo Egito) como ponto central no que podemos chamar de civilização afrikana nos ajudam a mudar a percepção sobre o próprio continente, e nisto, sobre nós mesmos, filhos e filhas de Áfrika. Estas pesquisas e estes trabalhos nos fornecem chaves para que consigamos entender a extensão contributiva dos povos afrikanos para todas as civilizações – inclusive as que se consideram mais avançadas-, mas sem o devido crédito. Ao ponto de ainda hoje estranharmos quando pensamos filosofia apartada do entendimento branco e de suas suposições.

Da esquerda pra direita: Prof. Uã Flor do Nascimento (UnB), Prof. Katiúscia Ribeiro (UFRJ) e Prof. Renato Nogueira (UFRRJ)

A Filosofia é mais sutil do que algumas bravatas, pois ela age no campo estrutural do nosso ser, por isso de seu trabalho mais extenso ao longo do tempo. Se estuda o que se está condensado, num casulo pronto, analisando o que forma este casulo. Eu só passei a enxergar isto quando vi q Filosofia tá num ditado, por exemplo, e o q o mesmo nos sugere. A riqueza dos detalhes culturais numa simples sentença. Já se perguntaram o porquê dos afrikanos serem tão proverbiais?

Pensemos os símbolos, os atos e escritas, mas a partir da mudança cognitiva. Só a mesma vai dar as respostas mais críveis e reais aos desafios aos quais estamos submetidos, porque depois da guerra e do conflito, o que sobra? O que você tem pra contribuir, pra compartilhar. E quanto mais africano-centrado você for, mais as chances de sua resposta à qualquer situação estarem linkadas à esta matriz cultural.

Leiamos bastante, mas também tenhamos consciência do que muito da base cultural que encontrarmos, estará presente na fala de nossos avós, de nossos pais, mesmo que eles não saibam a origem. Nosso dever é ligar e realçar este conhecimento que temos, mas que tem sido soterrado em nome de um outro que menospreza a contribuição dada.

Nossas Filosofias estão vivas e serão cada vez mais fortalecidas.

“Sem miolo, só há casca”.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 10 de abril de 2020.

Notas:

* professor Uã Flor do Nascimento tem um trabalho incrível de transcrição de vários filósofos e filósofas do Continente-Mãe, disponibilizando vários artigos traduzidos neste sítio aqui: https://filosofia-africana.weebly.com/textos-africanos.html

** professora Katiúscia Ribeiro tem mais de 10 anos de pesquisas sobre os saberes filosóficos do antigo Khemet, considerada uma das civilizações africanas mais antigas e avançadas do planeta. Também corrdena o laboratório Geru Maã de Africologia, na UFRJ.

*** prof. Renato Nogueira é professor do Departamento de Educação da UFRRJ. Tem uma extensa trajetória pra pensar a FIlosofia na Educação, sobretudo a infantil e escolar.

Covid-19 e Bolsonaro: o vírus que rompeu a bolha

Escrevo esse texto no começo da tarde do dia 26 de março de 2020. E até o momento, o que posso dizer é que temos vivido um absoluto abismo entre tudo o que as organizações médicas, sanitárias e governos nacionais têm proposto pra debelar essa crise de saúde, com reflexos na vida das pessoas, nos trabalhos e com impactos na economia e… a posição do bolsonaro, que contraria as recomendações seguidas em todo o mundo, inclusive por países que estão em uma condição mais severa de contágio e colapso que o brasil de agora como Itália e Espanha.

O que se tem visto é um presidente acuado por suas próprias conclusões estapafúrdias, colocando a economia – como se esta não fosse composta pela teia de relações interpessoais, logo, de gente – acima das vidas humanas. Com isto, tem uma visão desumana e extremamente limitada dos impactos do alto contágio no seio social, não apenas com as mortes e o colapso dos leitos hospitais, mas em como isto afeta o ritmo da vida das pessoas para além daquelas que sofrem com os sintomas do vírus.

Ao que parece, as ações controversas do governo federal tem surtido um efeito a muito esperado: um despertar sobre a inabilidade do atual presidente em lidar com qualquer situação crítica, mesmo com intenso bombardeio nas redes sociais e whatsapp. Logicamente, isto tem sido um efeito cascata que só em 2020 foi fortalecido pelos resultados pífios do PIB, a alta extrema do dólar na crise do petróleo há pouco menos de duas semanas, e agora o entrincheiramento numa posição que conflita com as recomendações de seu próprio ministro da Saúde (até o momento, ainda no posto) e da OMS (Organização Mundial de Saúde). O consenso sobre o seu afastamento ganha força real por parte da mídia tradicional e por formadores de opinião. Os efeitos tem sido nítidos, já com panelaços constantes pedindo a sua renúncia pelos mesmos que lhe deram voto. Nesse contexto adverso, o presidente direciona ainda mais seu esforço para o seu núcleo duro, se cercando de aliados, via decretos exonerando generais e almirantes e nomeando outros para cargos importantes (1) e permitindo os cultos dos templos religiosos em tempos pandêmicos(2), atendendo a interesses de Edir Macedo (IURD) e Silas Malafaia (AD-Vitória em Cristo), que já diminuíram o impacto do Corona vírus. O fluxo dizimista não pode cair.

Todas estas situações parecem ter furado -mas não estourado – a bolha das fake news das tropas digitais do bolsonaro nas redes. Por mais que se queira levar fé no presidente e em suas posições e atuação, como fazer isso de maneira consciente quando o mundo todo toma uma ação contrária, de preservar vidas acima de qualquer outro valor? Mesmo aqueles países que são modelo pro eleitorado mais instruído do presidente?  Há um limite na criação de uma percepção da realidade via informação, e ela tem de ter um espelhamento real, senão essa percepção se desfaz. É exatamente este momento que estamos assistindo, e com uma radicalização nítida do clã miliciano no poder, pois eles estão percebendo o derretimento de seu já pouco apoio junto a população que tem sentido os efeitos de todo um mandato em crise, sem retornos significativos para melhora da vida das pessoas.

O espaço criado pelo vácuo de ação do governo federal fortalece a todos que queiram se figurar como possibilidade presidencial em 2022. Os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, João Dória (PSDB) e Wilson Witzel (PSL), respectivamente, que se valeram da onda bolsonarista pra se eleger e agora lhe são desafetos, estão nadando de braçada nesse momento, pois estão tomando medidas que se espera de qualquer gestor público comprometido com a saúde e segurança das pessoas. Cabe aqui dizer que ambos tem em seus históricos um imenso desapreço por vidas pretas, por uma ação genocida e truculenta da polícia contra territórios pretos e pobres, e que provavelmente só estão agindo com tamanha celeridade contra essa crise de contágio porque ela não obedece cep nem status social. Se fosse um surto de cólera num morro ou palafita qualquer, os posicionamentos poderiam muito bem ser “à lá bolsonaro” de hoje. Mas por fim, isso os cacifa junto aos público e aos que influenciam o jogo político para as eleições presidenciais. Ninguém perdeu o olho no prêmio. O Covid-19 só lhes deu um palco adiantado para tal, junto com a total falta de habilidade política do mandatário nacional em seguir recomendações que não são de sua alçada.

Várias pessoas que votaram no capitão reformado votaram por desesperança, ódio da corrupção, valores morais, entre tantos outros motivos. Bem, isso não importa agora. Podemos falar que não são culpados, que toda a sociedade brasileira é, mas se quem votou nesse rascunho rasurado de político não se sentir culpado por ter desperdiçado não apenas o voto, mas em muito o destino de várias pessoas com isto, quando se colocará a mão na consciência? Culpa pode não ser o melhor sentimento, mas se com esta crise não houver um aprendizado sobre o que poder ser possibilidade política e o que deve ser alijado como opção, o bueiro sempre será uma alternativa.

A latrina tem várias digitais, mas a atual, é de quem votou conscientemente no 17 no primeiro e segundo turnos das eleições presidenciais de 2018. O ódio localizado cega e emburrece, e o preço tá sendo compartilhado por todos. Ódio e messianismo nunca foram bons guias de boas práticas na gestão pública. Taí a prova.

Que o aprendizado dessa pandemia possa nos elevar a um status de consciência política que vá além do fígado, por mais ódio que tenhamos do atual cenário social, econômico e político brasileiro. Sempre se pode piorar quando falamos de grandes responsabilidades nas mãos de quem jamais deu uma prova de competência para tal.

Observação: Até o momento, o Brasil tem 57 mortos, sendo 46 em São Paulo e 2.433 infectados. As atuais condições do sistema de saúde do país fazem com que estes números estejam muito subnotificados. É possível que para cada infectado, haja pelo menos outros 15 não notificados (3).

Nota (1): https://www.jusbrasil.com.br/diarios/291157694/dou-secao-2-26-03-2020-pg-2

Nota (2): https://oglobo.globo.com/brasil/decreto-de-bolsonaro-inclui-atividades-religiosas-entre-areas-essenciais-durante-estado-de-calamidade-24329301

Nota (3): https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-do-hospital-albert-einstein-preve-pico-do-novo-coronavirus-em-duas-semanas,70003239115

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 26 de março de 2020.

A Urgência de Pensar o Devir

Texto escrito há 6 anos e me parece que estamos ainda mais perdidos e fragmentados do que àquela época..

Tempos difíceis os quais vivemos atualmente. O descortinamento do racismo, com toda a sua carga de repulsa à mostra, de ódio inflamante, nos mostra que nos encaminhamos pra dois momentos ímpares: ou estamos no fundo do poço e a reação virá na medida proporcional do ódio gerado e manifestado, com consequências a todo o tecido social, ou do fundo do poço não se pode passar, e tudo que tem acontecido aos pretos nos últimos tempos, sobretudo esse fatídico ano, servirá como alavanca de avanço político às questões raciais.

Sendo profundamente otimista neste texto – o que não significa que assim o seja -, fico a me perguntar a que tipos de avanços nós, povo preto, estamos de fato construindo. Qual a nossa proposta pro Brasil, para a comunidade negra? Seremos sempre os que irão às ruas, e na hora da negociação, negociaremos o naco? O momento me faz perceber que o praticismo político é a nossa moeda de negociação, não o método, porque carecemos de um projeto preto autônomo de sociedade. Nos encaixamos perfeitamente no lugar do que reivindica algo, mas já tendo como trunfo a não aceitação da reivindicação. Minha preocupação se reside neste simples exemplo: se tivéssemos uma carta em aberto para fazer algo em prol do povo preto, não teríamos ideia do que construir, por onde começar, quais instituições a dar fôlego. Nossas forças estão de tal forma centradas no agir, no curto prazo, que não conseguimos dar o passo maior. Estamos na luta da sobrevivência, mas não há o horizonte para quando o momento do real viver, chegar.

lelia-gonzales-foto-januario-garcia-750x410Foto da militante e intelectual Lélia González, que produziu uma bibliografia vasta pensando o brasil em conjunto com atuação política

Essas palavras são orientadas por algo simples: revoluções não se faz sem teorias, sem embasamentos calcados em princípios norteadores. Movimentos sem esta base são facilmente capturáveis e distorcidos. Dito isso: quem no seio da população negra está a pensar o devir? Temos milhares de irmãos espalhados pelo país, mas quantos de nós estão seriamente preocupados com os efeitos da luta o longo prazo, nos efeitos que a ação de hoje terá sobre os netos? Há empenho da maioria dos militantes nas causas pela igualdade racial, nas organizações, nas marchas e passeatas, seminários e congressos, mas há muitos poucos sentados na busca de nosso Horizonte, de um elemento normativo, de uma carta de intenções, no qual nossa contribuição para as relações raciais no Brasil possam estar amparadas.

Infelizmente, é compreensível não termos em abundância ativistas deste tipo. Nossa condição é exasperadora, e as ações racistas do Estado brasileiro nestes últimos tempos (Amarildo, Claudia, DG, Negro Blu, menino Joel e tantos outros) tem nos impelido à tomada de ação, num esforço reativo de estancar a sangria a qual nós sempre estivemos submetidos nessa terra. É algo que nos envolve emocionalmente, e faz da ação a única reação cabível. Faz da solução algo pra ontem. Entretanto, esse é o impulso da maior parte dos engajados na luta racial. A formulação do devir demanda tempo e a consciência de que os esforços de hoje não nos será perceptível, mas que seus efeitos serão mais sólidos. É ter a consciência que plantamos hoje o Baobá do qual nem o broto se enxerga, para que os virão depois possam ver a árvore no seu esplendor. É saber que não há glória imediata, mas que o que se combate e pelo que se luta terão um espaço assegurado. Mas quem quer cumprir tal papel? Quem quer ser aquele que no momento da efervescência, mantém a calma e segue o que aparenta “não fazer nada diante da calamidade” e aguentar as pedradas dos militantes que tão na reação? Quem aguenta o rojão de seguir o roteiro e a importância do que faz diante do rojão? Poucos.. E pelo que tenho visto, cada vez menos.

A teoria, o estudo, não pode ser pensada como algo apartado de um ativismo efetivo. Isso joga contra o acúmulo de saber que pode se espraiar para além dos limites espaço-temporais que concebemos. Pode atingir um menino sem perspectiva que antes daquele momento, jamais achou possível ser ou fazer algo de relevância. Pode ser o proto-modelo a ser seguido, a ser pensado ou até destrinchado, mas um molde para o que se deseja, pelo que se combate hoje. Urge em nosso meio o espaço e o respaldo da comunidade negra e ativista a estes indivíduos, e temo o preço que se possa pagar por isso. O devir é colocado ainda de forma muito abstrata, como um horizonte inalcançável, que quando chegar, “se vê o que se faz”. O avanço e o retrocesso na luta ficam a cargo de quais parâmetros, ditados por quem e servindo a quais propósitos?

É necessário um pacto, no qual a heterogeneidade nas formas de lutar contra o racismo e seus efeitos nefastos possam ser legitimados e apropriados por todos os pretos, os que são ativistas e os que não são. Estudar não pode ser considerado perda de tempo, tampouco a deslegitimação da ação enérgica, mas deve haver um equilíbrio para que ambas se reconheçam e se intercambiem no processo histórico. Espero que este ano, o que pra muitos pretos possa ser visto como um dos mais sangrentos e de maior ataque ao povo preto na história recente brasileira, seja também o despertar para o que queremos e para a construção de um modelo que nos permita alcançar o que almejamos.

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“Há pessoas pessoas pretas no futuro”.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), em algum momento de 2014…

Por uma noção de imortalidade afrikana

A percepção da imortalidade é um conceito fundamental para pensarmos como se distingue a perspectiva cultural ocidental e a Yorubá. Cabe pensar em que ambas pensam no sentido de continuidade da vida, mas os termos diferenciam em absoluto.

Quando pensamos a busca pela imortalidade, baseada na perspectiva europeia, as histórias fazem alusão ao “fonte eterna da juventude”, ou ao “elixir da vida”, o que denota uma ideia de imutabilidade da condição material. O conceito de imortalidade está fixado a esta vivência, ao qual não sofrerá as intempéries do tempo. Ou seja, a imortalidade dessa vida só vale se ela for gozada na melhor etapa, que seria a juventude, na primazia do corpo e das sensações. O corpo, assim, é o elemento que permite amplificar as sensações, fazendo assim, dessa experiência algo rico e cheio, completo. Seria uma tentativa de ter a experiência divina a não finitude, da semelhança a experiência do que seria D’us. No entanto, nada evoca mais a morte do que a ausência de ciclos. A reflexão sobre a imortalidade em um único contexto de vida não concebe a perspectiva cíclica das emoções e situações, percebendo que não há situações infinitas, assim como inovações. Sendo assim, o que cabe aí a ideia de legado, de herança não-material? Qual a preocupação com o entorno se a finitude não é uma preocupação? Nessa questão cabe a tão propalada “vida eterna”.. O que é o mundo, senão apenas um ponto de passagem?

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No fundo, é uma ideia que teme a morte, que teme o fim, mesmo esse baseado numa condição cristã inalterável. A perspectiva da imortalidade no conceito europeu, seja em vida ou na morte, parecem elementos estanques, apesar dos desdobramentos psicológicos que buscam mostrar.

Quando penso a imortalidade em termos afrikanos, do qual discorro com mais profundidade sobre a cultura Yorubá, a imortalidade é um conjunto de vidas e mortes, que se separam entre “inspiração e expiração”. A sua imortalidade contém a morte, porque ela é indissociável da vida. A morte, portanto, é uma outra etapa de um ciclo necessário para a vida, que se reifica em seus filhos. A imortalidade é o constante retorno por meio das novas vidas que nascem em sua família. Uma criança é sempre sagrada, porque é o retorno de uma avó, de um parente distante. É novo, mas é também velho pois já fazia parte. Neste sentido, pensar o amanhã, pensar a sua influência na sua família, nos seus filhos e no mundo, diz muito sobre o impacto que você quer ter pros ancestrais em retorno, mas também pra você ao voltar ao plano da vida. Como não pensar em melhorar as suas condições, em se tornar uma melhor pessoa ou não ter preocupação com as condições climáticas ou possibilidades alimentares do futuro?
O conceito do sagrado, do que seria o Divino, não está na vida eterna e jovial, mas no bom funcionamento do ciclo e no cumprimento do seu destino consigo e com os outros nesse plano. Como não são mundos estanques, sem contato, os ancestrais têm a função de aconselhar na melhor ação desse ciclo dos seus descendentes. Sendo assim, para que temer a morte? Se teme mais a falta de filhos, que é a quebra desse elo.

Envelhecer e ver as sementes que se tornaram árvores e permitiram que o elo não tivesse fim. Uma noção de equilíbrio e sob as regras naturais que se abatem tanto sobre a mosca, como sobre o elefante.

13307192_1265806800113863_4923905427165847572_nFoto retirada da comunidade “Black Family Reunion”, do facebook.

São apenas algumas reflexões baseadas em algumas poucas leituras, alguns princípios e os desejos culturais manifestos que se mostram nas falas, expressões e objetivos. Cada civilização aponta para aonde quer seguir. Certos desejos e objetivos irão apontar para as estrelas, para a Lua e planetas desconhecidos como opção de vivência, baseada na conjectura de Terra acabada. A Terra tem seu tempo, que no nosso, é imortal. As perspectivas de nossas imortalidades, enquanto povos, enquanto humanos, também evidenciam qual será o nosso destino. Espero que o Sagrado, em sua forma cíclica e natural, prevaleça pelo desejo do elixir e das sensações em desespero da eterna juventude. São dos retornos que estamos falando, e da qualidade dessas novas vidas que está em jogo.

 

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 08 de novembro de 2019.

Aquele irmão… Que sou eu

Texto escrito em julho de 2016.

Aquele irmão sempre na mesma esquina, pouco mais dos 30 anos, com a vida se esmilinguindo entre conversas vazias e cervejas compartilhadas. Como é duro ver alguém com potencial muitas vezes se desvalorizar ou se sentir frustrado em seus sonhos e objetivos.

Poderia falar de maneira geral, mas falo de um homem negro, e falando desse caso falo de uma parcela bem representativa. Pontuar isto é importante, porque eu fico pensando o quanto mascaramos as nossas derrotas em sorrisos mecânicos, alegrias forçadas e olhares tristes, sem espaços verdadeiros de abertura, de cura. O quanto que se morre por dentro antes de morrer? O quanto se morre em vida tendo que ser forte sem rede de apoio e o apoio “real” não segura o reggae das suas agruras internas? O quanto se leva a vida em banho-maria ou simplesmente em água parada por objetivos destruídos ou não-concluídos?

Quantas vezes falar de temas importantes da humanização de um ser é levado como “passar pano”. Parada é mais profunda, que muitas vezes por não ser exposto, não diáloga com as ações e simplesmente se mecaniza os movimentos.

Vamos continuar morrendo antes dos 70, não só pelo racismo e por essa construção branca de masculinidade inatingível, mas pela implosão, pela corrosão do não-dito, pela pressão de ser o que não se é permitido e pelas cobranças advindas daí.

Hoje entendo que espaços masculinos são essenciais para que se modifiquem paradigmas sociais destrutivos de nossa sociabilidade, tanto para nós mesmos como para as pessoas com quem convivemos. E pela experiência que tive, só se dá num lugar com ausência de julgamentos. Porque no fundo, todo mundo tem algo a criticar e a ser criticado, mas só um dos lados tem tido o direito a “desconstruir” o outro, enquanto este só pode escutar.

A doença nos atingiu como povo, e como povo deve ser combatida achando assim a cura ou as curas. Precisamos nos ouvir. Precisamos fazer cair o muro que nos impede a comunicação. Precisamos nos tornar melhores homens, primeiramente por nós, pra que isto se espraie em quem amamos ou queremos amar.

“Demolir para reconstruir” (Molefi Kete Asante)

“Humor”: uma arma de desarme

Whindersson, Carlos Maia, Felipe Netto.. blogueiros, youtubers, digital influencers.. Estes são algumas das figuras com mais seguidores e inscritos em seus respectivos canais nas mídias sociais. São os chacrinhas dos nossos tempos. São pessoas que se tornaram ricas e famosas por seu conteúdo humorístico nas redes sociais. São bem profissionais e tem equipes pagas para fazer com que suas imagens cresçam ainda mais em importância e renome, para que  continuem a ser patrocinadas, com o máximo de marcas possíveis. Hoje fazem o papel que as novelas difundiram em uma escala inimaginável e os grandes programas de auditório faziam: divertir. Alegrar. Sedar. Conformar.. Geralmente quem fez isto bem, tornou-se multimilionário (sendo branco, lógico).

O ponto chave é: porque o humor dá tanto lucro e arrebata tanto as pessoas?

Uma resposta singela: porque este humor ao qual faço referência é a base do entretenimento, e entretenimento é também um dispositivo que visa influenciar/manipular o comportamento. A emulação destas pessoas engraçadas, que nos entretém das diversas formas tem uma função de retirar tensão, de amainar conflitos. Numa sociedade atravessada por diversos pontos de tensão por conta das inúmeras desigualdades e violências perpetradas, o entretenimento tem uma função social definida, e no que é produzido e reproduzido nos espaços virtuais patrocinados – logo, em consonância com o poder vigente – que é o de afagar, rir, ser engraçado, e esquecer as mazelas, não se indignar.

Boa parte destas pessoas não se envolvem em assuntos espinhosos, em tensionamentos, a não ser aqueles que estejam dentro do campo da polêmica, da novelização das situações, para que as atenções estejam voltadas a si mesmos. Quando vemos os comediantes de stand up comedy, em sua grande maioria vemos que as rotas são quase as mesmas, mesmo quando os comediantes se pretendem mais politizados. Mas para essa categoria de humor seria necessário outro tipo de olhar, já que o alcance é diferenciado, mesmo estes inseridos na lógica das redes sociais.

Nossas artes não estão fora desse lugar, aliás, somos os principais consumidores destes produtos. Fabricações nossas, como o samba, está ainda em disputa sobre o seu papel: se é o de ser conforto, ser alerta, ser diversão.. Talvez tudo isso, mas o elemento de ser apenas prazer, de ser apenas efusivo, principalmente com o controle dos grupos, das músicas, das agremiações por mãos que não sejam pretas, joga na mesma chave do entretenimento que mais nos tonteia do que nos põe em foco. Esta alegria fabricada e reproduzida de modo fabril e febril foi também uma arma de desarme. Pessoas alegradas ( não alegres) esquecem os problemas, aumentam a faixa de suporte às agruras pelo descanso emocional, emotivo e psicológico dado, fornecido pela alegria momentânea.

Não é a toa que os estudos e patentes das redes sociais e aplicativos sobre os sentimentos humanos via algoritmos é uma mina de ouro. Induzindo emoções, se controla comportamentos, e controlar comportamentos é perfeito para a manutenção do poder estabelecido. O riso, por incrível que pareça, pode ser um grilhão sem corrente. Quem não quer se sentir bem, ainda mais em situações em que nós deveríamos estar com ódio, nervosos? O humor como uma dose.. mas dose de quê?

O entretenimento é extremamente importante pro nosso bem-estar, mas o que fazemos segundo nossos propósitos, não como dispositivo de quem nos quer na agrura.

Um humor fabril é como um remédio, que não cura a dor, mas atenua a crise. O ponto é quando ele passa a ser o mascarador da dor, como uma morfina.

O que estamos vendo não é alegria ou felicidade. Mas lampejos que precisam de sempre mais doses, pra superar a anti-esperança e o horizonte desolador de nossos tempos e vivências, mas sobretudo para causar inércia, apatia, como quando ao choro do bebê, lhe damos alguma bugiganga ou fazemos brincadeiras. O ponto é parar o choro, mas neste caso, somos o bebê sendo entretidos com toda sorte de apetrechos.

É preciso pensar nas lógicas e interesses do grande capital hegemônico em investir em tais pessoas, ou melhor na simbiose dos investimentos das redes sociais em mapear nossas emoções e fornecer tais dados às grandes empresas. Nossas emoções, a maneira como pensamos e agimos, é sempre tema e motivo de investimentos. Logicamente, essa relação não é nova. A política do “pão e circo” vem sendo atualizada pelas mudanças dos tempos, com as novas tecnologias sendo somadas e aplicadas como reprodutores dessa lógica de controle pela sensação de alegria.

Nem todo humor é nocivo a nós  (e quando digo esse nós, me refiro aos “condenados da terra”) . Ele cumpre um papel importante em também provocar reflexão, questionar valores, hierarquias, em constranger. Em se tornar necessariamente uma arma de distorção, de enfrentamento, pelo riso. Quando o riso causa escárnio de posicionamentos vexatórios, de desigualdades seculares, de ideologias e teorias anti-humanas. O humor que desestrutura tem sua acidez, seu lugar do incomodo. O humor/entretenimento que traz saciedade em meio a fome, em meio ao choro e ao caos, não tá trazendo apenas “alegria a quem precisa”, mas sendo também sustentáculo de toda essa situação.

A culpa não é do humor. É de quem financia tal espetáculo, para que as nossas gargalhadas sejam a melodia de nossa satisfação, e assim, conosco rindo, o caos continue.

Dose por dose, a apatia da alegria fabricada nos impulsiona, ou melhor, nos retrai. E neste retrair dos músculos, nos é retirado o que é vital: a indignação real, motor de toda e qualquer mudança de fôlego.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 06 de outubro de 2019.

“Negros” enquanto categoria: fragmentações no horizonte

“Você é negro? Você é visto como negro?” Uma pergunta que alguns poucos anos poderia ser seguida de respostas simples, dadas com convicção, hoje necessita de mais ponderações. O padrão tão duramente batalhado pelo movimento negro desde os anos 1970, com impactos profundos nos recenseamentos, instituições e na auto-percepção das pessoas negras (mestiças e pretas) parece ter chegado ao seu fim. Pelo menos no campo das mídias sociais, mas com efeitos massivos nas relações cotidianas.

A conformação da população negra em uma categoria racial já dada, permitiu avanços na leitura e observação dos indicadores sociais, políticas públicas foram tomadas – mas de pouca mitigação do racismo crônico congênito -, mudou a percepção que as pessoas negras tinham de si mesmas, passando a afirmar uma negritude antes negada. Maior espaço nos comerciais, a noção do consumo negro se fazendo presente, a ideia de clientela negra ganhou muita força a partir dos anos 2000.

No entanto, a diversidade fenotípica (dos traços físicos) nas pessoas negras sempre impediu que a ideia de “ser negro” fosse aceita de modo inequívoco, dada as gradações e também o intenso trabalho do racismo em degradar tudo o que significasse ser negro: qualquer elemento de brancura, era um sinal para o escape. Em suma, houve diminuição intensa da rejeição das pessoas negras ao se afirmarem, mas não foi algo totalmente aceito por todos.

A diversidade de fenótipos foi usada de maneira escancarada como uma política de apaziguamento racial e de negação do racismo pelas elites brasileiras, assunto que daria um outro texto. O ponto central a ser discutido neste texto é uma hipótese de como a diversidade de fenótipos enfraqueceu um discurso unitário centrado em raça. Divido em três pontos esta argumentação:

1) As ações afirmativas: As ações afirmativas foram um marco no debate de políticas de reparação com foco em raça e classe. Ao serem aplicadas nas universidades de prestígio, seja com reserva de vagas ou bonificações, houve um intenso debate na sociedade brasileira sobre a constitucionalidade de sua aplicação, sendo acusada de dividir o país em “negros e brancos”. Para além do intenso debate, chamo a atenção para as “conversões” de pessoas que nunca antes se pensaram negras e passaram a se pensar na medida em que poderiam ter uma vaga assegurada na universidade. A busca por um ancestral negro na família passou a ser um objetivo para confirmarem sua negritude, mesmo que não aparentes em seus traços. Obviamente, houve muita enganação e tentativas, mas passou a ter também uma confusão nas auto-declarações: Quem é negro a ponto de poder ser cotista? As diferenças de uma banca de avaliação para outra sugerem que os critérios, para além do social, poderiam ser mais subjetivos, dado que o “ser negro” poderia variar de região para região. Essa linha de definição da negritude passou a ser constantemente desafiada, com a inclusão de pessoas com ascendência negra mas que em seus fenótipos poderiam ser consideradas brancas. Os processos de “enegrecimento” (seja por táticas de escurecer a pele e enrolar os cabelos, ou estar associado a grupos negros e assuntos de interesses do povo negro) foram muito denunciados.  A linha que define negros e brancos passou a ser mais “branca” pelas táticas utilizadas pelas pessoas não-negras para conseguirem sua vaga na universidade.

2) blackfishing: Estes são fenômenos mais recentes, mas que de certa forma estão associados aos elementos citados no ponto anterior. As mídias sociais, como um espaço de publicidade e propaganda de vários tipos de produtos e ideias que poderiam ser especializadas para determinados segmentos sociais. Para a população negra, sobretudo mulheres negras, há uma gama de produtos que fez com que a associação de suas imagens a estes lhe poderia ser uma ação rentável, assim como as pessoas brancas já faziam e recebiam para fazê-lo. A grande questão é o processo em que pessoas brancas passam a se utilizar de filtros de mídias sociais, como o Instagram, além de se “produzirem” (com roupas, cabelos e seus cortes, tranças e outros adereços) para se passarem por pessoas negras e assim, lhes tomar a posição de rentabilizar neste cenário virtual. As pesquisas em históricos e as consequentes denúncias de apropriação cultural são uma chave de inibição, mas o ponto que mais uma vez chama a atenção é: há uma facilidade, sobretudo com os apetrechos virtuais, de pessoas brancas conseguirem se passar por negras, mas o inverso, o bloqueio permanece. Essa transição, mesmo quando apontada, produz efeitos de alargamento do entendimento de um fenótipo negro, pois foi aceita até a denúncia.

3) “Preto” como categoria política e não apenas fenotípica: Os diversos movimentos negros organizados levaram o debate da questão racial para o cerne político e social da sociedade brasileira, e ficou assim por mais de uma década. As diversas pautas, as autodefinições, as teorias de luta e engajamento criadas aqui no brasil e também trazidas de fora, forjaram um novo entendimento sobre o conceito de “preto”: preto quando pensado racialmente não configurava apenas sobre uma pessoa de traços negróides e pele melaninada, mas sim um arcabouço de práticas, falas, vivências e experiências associadas culturalmente ao povo preto.  Descolado do fenótipo, sendo apenas prática, uma pessoa branca se sente representada na cultura negra para se afirmar “preta”, já que ela tem a experiência da cultura e/ou de vivência. Portanto experiências notadamente negras (candomblé, maracatus, capuêra, sambas, entre outras) poderiam ser um tipo de certidão para pessoas brancas se afirmarem negras, pois boa parte dessas formas de ser e estar no mundo afetam a corporeidade, o olhar, e muitas tem códigos de conduta e vestimentas não-explícitos, que só reforçam essa sensação.

Os efeitos dessa combinação tem sido catastróficos. A auto-definição de brancos como negros tem permitido uma confusão na definição que negros tem de si mesmos enquanto negros. Esta dúvida – e peso – recai sobre as pessoas que são frutos de relações interraciais, trazendo o fenótipo tanto de negros quanto de brancos. Os brancos se utilizam das características da mistura racial e sua diversidade para se assumirem negros, gerando questionamentos intensos sobre o pertencimento racial das pessoas que são negras, mas que podem ser vistas como brancas a partir da supressão de algum elemento característico.

A dúvida e essa margem de definições muito largas tem levado a um novo processo de reafirmação da negritude, com o foco na pele e nos traços: a pessoa inegavelmente negra é a preta, com sua pele retinta e seus traços indubitavelmente afrikanos. A supervalorização destes traços tem um tom de subversão da ordem racial, no qual as pessoas mais escuras são as mais desvalorizadas e tem sua auto-estima corroída, porém, é uma resposta aos critérios subjetivos e controversos da definição da negritude no corpo, nos traços, principalmente das pessoas com ascendência branca e negra. Se não sabemos quem são pessoas negras, nos voltemos a quem temos certeza. A quem não temos certeza da negritude, “está do lado de lá”, sendo vistas como brancas ou sendo alvos de um escrutínio sobre seu pertencimento racial por toda a sua trajetória. Algo perverso, ao meu ver, é que os limites raciais mudam conforme a vontade de quem definiu estes critérios raciais: brancos podem se autodefinir como quiserem, mas negros e outras raças jamais poderão se definir enquanto brancos. A branquitude é um elemento de poder, que até permite que um dos seus abdique deste lugar/espaço, mas que impede que esta vacância seja preenchida por um não-branco. Isto é tão estapafúrdio que neste movimento, as pessoas brancas podem literalmente reinventar o que “negro” significa e quais são seus elementos característicos,  incluindo a si mesmos, já que eles mesmo que inventaram o que negro significa. O nosso movimento tem sido de reação a esta criação, porque sem os referenciais em Áfrika, ela permitiu que nos recriássemos e nos percebêssemos como pessoas, com uma característica comum. A defesa é a este legado, `auto-percepção fora das condicionantes degradantes criadas pela lógica racista.

Este fenômeno é uma descontinuidade das lutas travadas pelos movimentos negros organizados, que pensaram a categoria “negro” como uma junção de pretos e “pardos”, sendo uma resposta aos diversos tipos de denominações para as cores não-brancas nos censos. Uma miríade com mais de 100 tipos de cores. É nítido que essa aglutinação foi um avanço, mas que está caindo por terra pois a ideia da categoria racial como formulada pelos nossos mais velhos, não se encaixa numa configuração no qual o entendimento sobre o que faz uma pessoa ser negra está cada vez mais perdendo sua referência preta (e ao que os pretos passam socialmente) para elementos característicos que podem ser enxergados em pessoas brancas. Os julgamentos pululam, assim como a percepção subjetiva sobre a cor, por critérios pessoais. Essa dissociação dos pertencimentos raciais provocada por esta distorção pode levar a um tipo de separação política que não será benéfica às pessoas negras no país. Uma nova discussão precisa ser travada, pois o vácuo em uma identificação mais segura e esta fluidez racial tem condicionantes implosivas para o nosso próprio entendimento do que nós somos no brasil.

Há um ditado que diz que:”nasceu depois das 6, é meia noite”, para identificar que não sendo branco, será negro; Este nosso momento parece dizer que depois das 6, ainda tem muitas horas para se definir quem será negro. O que fazer com estes rejeitados raciais é o ponto que definirá se realmente somos maioria no brasil ou não, com as eventuais consequências políticas e sociais dessa decisão.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares) em 17 de setembro de 2019.

A civilização marginal como Centro

Texto em homenagem à Lazaro Ros (1925-2005), cantor afrocubano e praticante da Santería.

Cuba, Aruba, Colômbia, Uruguai, Equador, Suriname, Guiana, Belize, Trinidad e Martinica. Ainda tantos outros países nessa Améfrica Ladina. No lado de cá, Codó, Recife e Recôncavo, fora os inúmeros locais que são base de nossa força nuclear, mesmo em meio às margens mil impostas.

Muita cegueira no enxergar de nossas grandezas, ainda presos e seduzidos pelo vício estreito do sucesso vendido por fora. Ainda de fora a nossa força-potência os sustenta, pois só isto explica o fetiche e essa aproximação tão extremada, esse ódio travestido de fascínio que nos quer até o átomo, mas nos expurga como um todo, como o universo que somos.

Manifestações culturais e religiosas de Belize, Haiti, Codó e Trinidad e Tobago

O que me machuca é que essa força-potência, essa chama de vida, há muito por eles descoberta em nós e transformada em quase tudo que o mundo se arvora, a nós, pra grande parte de nós, nada mais é que poeira, pó encastelado em casas arruinadas, em templos fechados e cera de vela seca e gasta. Miramos ao céu, ao alto, quando a Força-Vida que nos sustenta vem do chão, vem da terra. Sobrevivemos porque a nossa existência sempre se mirou do chão pra se erguer e suportar.

Por isso, olho como nos sentimos seduzidos pelos badulaques, perfumes e apetrechos mentais que os oynbo erguem a si mesmo como monumentos de grandeza, de realização humana, e me acometo sim, de uma profunda tristeza. As miradas em paris, veneza, os cafés, os bistrôs, os santos em suas versões barrocas, modernas, góticas; as bíblias com suas versões e entendimentos filtrados ao bel-prazer e interesse de quem nos aprisiona pela fé; e o nosso gozo nessa admiração que reflete a imagem de auto-realização deles. O ponto não é estar em tais lugares, é vê-los como ápice civilizatório, de pra onde devemos ir e do que devemos ser.

O mundo por esta lente é uma fresta estreita das possibilidades nossas no mundo. De ver nossas tecnologias reinventadas em formatos de sobrevivência, mas não só, de civilidade, potência humana e criatividade. Que no barro e na palha, no mato, no vento vistos imageticamente como de gente “subdesenvolvida” esconde-se o ouro da mina que eles não cansam de vir buscar para resolver os seus problemas (que acabam por se tornar nossos). A margem do mundo é o Centro, e o centro do mundo projetado é a aresta, é a margem é o escombro travestido de palácio.

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Foto por: Roger Cipó

É preciso perguntar-nos porque as nossas mais diversas formas de resistência estão intimamente relacionadas ao campo espiritual. Não das religiões, mas sim das estruturas mais diretas de contato e vivência espiritual. E porque são exatamente estas conexões que são deturpadas, escondidas, vistas como más e combatidas. O laço da ancestralidade e espiritualidade africana em todos nós é um pulsar que se bem orientado, bem canalizado, é uma força incomensurável. Ayti é exemplo, Ngola Janga também.

A força, a criatividade, a cultura está em nós, intrinsecamente em nós. A civilização tb!

Ousemos nos buscar! Os exemplos estão vivos e manifestos, pois pulsam no mundo central que é enxergado como marginal!

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 1 de setembro de 2019.

As chamas: da Amazônia e a colonial

A Amazônia arde em chamas.

O presidente-espantalho numa consecução de presepadas, demite Ricardo Galvão, o diretor do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), por dizer o óbvio: o desmatamento aumentou de maneira alarmante. Em seguida, pela negação do presidente do aumento do desmatamento, as forças do “Agro pop” se estimulam e incendeiam os biomas do Pará ao Mato Grosso, incluindo áreas do Paraguai (com latifundiários brasileiros) e Bolívia.

As queimadas, de tal ordem, alarmam o mundo. Saiu do controle o fogaréu. Os chefes viram e não gostaram. macron, presidente da frança, coloca em pauta a Amazônia na próxima reunião do G7, o grupo dos mais ricos.

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“Nossa casa está queimando. Literalmente. A floresta amazônica – o pulmão que produz 20% do oxigênio do nosso planeta – está em chamas. Esta é uma crise internacional. Membros da Cúpula do G7, vamos discutir primeiramente esta emergência em 2 dias” Emmanuel Macron, presidente da França

Na alemanha, que há alguns dias junto à noruega retirou sua doação de preservação ambiental à floresta, engrossou o coro. Jornais do país clamam uma atitude européia de embargo aos produtos brasileiros que não tiverem comprovação de lisura ambiental. É um cenário de alarme dos países mais ricos do mundo.

Aí que entra o jogo geopolítico: a preocupação mundial com a Amazônia é legítima, mas a preocupação destes países têm outros elementos. A Amazônia não é apenas o pulmão do mundo; de lá, se extrai a base para vários tipos de produtos medicinais e de tratamento, há riquezas no solo amazônico ainda não descobertos e que por décadas tem sido alvo de interesses dos países coloniais. Se formos buscar por tipos de patentes de vários produtos do mercado estético, gastronômico e farmacêutico, veremos que estão no nome de empresas e institutos de pesquisa europeus, canadenses, americanos, é que só existem aqui. Tudo na mão grande.

Os governos anteriores ao do presidente espantalho nunca souberam como explorar tanta fartura em forma de área verdade, e sempre cedendo pra elite agropecuária que prefere o Brasil como latifúndio, só na exportação de soja e carne bovina pra fora. Ou seja, um modelo ultrapassado, que é vitrine do quanto a cultura brasileira é de arrasto, de destruição de falta de investimento real.

A discussão do G7, com os estados unidos do trump, lá pode acender o farol colonialista de sempre: já que a Amazônia é o pulmão do mundo, ela não pode ser administrada só pelo brasil, mas por todos. Essa é a senha pra chupinhagem geral das riquezas daquele solo em nome da questão ambiental, da preservação da floresta. A sanha por riquezas tá no ar, basta ver o trump querendo comprar a Groenlândia, a maior ilha do mundo, que tem riquezas ainda não mensuradas debaixo da camada de gelo que tem se derretido por conta do aquecimento global.

O jogo tá sendo jogado, e mais uma vez, o presidente-espantalho, com um pensamento colonialista do atraso, abre brecha pro pensamento colonialista hipócrita mas travestido de humanista e consciente, embutindo assim o ataque num discurso de defesa.
A sede e fome desmedidas desta elite estúpida só nos leva a perdas: se continuarem, com o fim da floresta sem ter noção dos impactos ambientais irreversíveis à vida humana; e se parados, do fortalecimento de uma posição mundial que tira autonomia sobre parte do território nacional.

O presidente-espantalho e sua laia nem podem ser chamados de nacionalistas, porque nem mesmo no pior sentido, entendem o significado disso. Os desertores de vários escalões começam a se multiplicar após as seguidas reprimendas da elite política mundial.

Foi colocado um pedaço de asno no comando. O preço a pagar pode ser ainda pior do que imaginávamos. Nisto ele não surpreende: suas ações e impactos são sempre piores do que a pior expectativa imaginada.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 23 de agosto de 2019.

Qual o sentido de um guarda-costas negro numa sociedade/cultura racista?

Uma das coisas que sempre me chamaram a atenção na maneira como o racismo se manifesta no Brasil é como ele é anti-negro e ao mesmo tempo se utiliza das imagens criadas sobre os negros para a manutenção dos brancos.

Uma dessas figuras emblemáticas para mim é o aparato privado de segurança. Quando olhamos os seguranças das celebridades, de grandes empresas/instituições ou mesmo lojas de atacado/varejo com objetos de pequeno valor, a representação de homens negros altos e fortes é evidente. O homem negro alto e forte é o símbolo maior no imaginário racista para a brutalização, animalização e portanto, do medo branco. É nele que recai o pavor absurdo que os brancos (homens e mulheres) tem de serem violentados (cada qual a sua maneira) e abusados fisicamente, já que é no atributo físico, no porte, que se encontra e se encerra toda essa criação.

Mas se estes homens são o arquétipo do que eles tem mais receio, por que eles são os principais contratados para os serviços que, em muitos casos, será o de proteção de pessoas que lhes temem?

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Não saberia responder com exatidão. Tem uma esfera do racismo que foge ao entendimento imediato. Mas uma das hipóteses é a maneira que os brancos confiam nos laços de controle e obediência destes homens, driblando o seu terror via práticas do profissionalismo e, fazendo de sua crença extremamente racista e estigmatizada, algo meramente prático. Outro ponto é como o estereótipo do “negão”, como alguém agressivo e brutal, está de tal forma disseminado no seio social, que faz com que um medo localizado dos brancos seja transformado em um dado que corresponde ao medo de todos os grupos, inclusive de pessoas pretas.

Isso leva a uma situação bem estranha: o estereótipo racista, baseado no medo branco, serve para proteger o branco e apavorar qualquer outro, inclusive pessoas negras. Não é incomum as violências desses contratados contra pessoas de seu grupo étnico/social para defender o branco, ou fazendo a leitura pragmática “desrracializada”: fazendo apenas seu “trabalho”.

Outro ponto ilógico seria a confiança (não absoluta) nos negros – quem eles mais temem – serão os que vão protegê-los contra tudo e contra todos. É uma confiança no modelo de relação existente, em que o alvo, a vítima (o negro), confia no algoz branco, que teme a vítima negra. Confuso né? O medo é uma arma, sobretudo se você pode utilizá-la contra outros.

No campo da segurança de alto nível (guarda-costas presidenciais, aparatos do Estado ) é uma outra lógica que se insere, com poucos negros como agentes. O que se evoca é o profissionalismo, a destreza, a agilidade e a rapidez no raciocínio rápido para decisões cruciais.  Se percebe nestas escolhas uma reprodução dos mitos raciais, em que os estereótipos e criações racistas sobre os homens negros é um atributo que o qualifica para o trabalho, e os atributos que as pessoas brancas tendem a atribuir a si mesmas no campo da excelência, também lhe cabem como prova para o mesmo trabalho.

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O medo branco produziu um produto em que o beneficiado, por incrível que pareça é o próprio branco, mas que tem efeitos em toda esfera social.

Diria ser insanidade, mas a engenhosidade destas criações é que permite que a masmorra racial a qual estamos submetidos se mantenha de pé, com os custos mais pesados jogados nas costas de quem faz o papel de temido. Por ser temido por todos, é o alvo preferencial das mortes violências, por armas de fogo.

O medo os protege, mas sobretudo NOS mata.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 04 de agosto de 2019.

Jovem Lobo solitário

Esse foi um texto escrito em 18 de janeiro de 2012, fruto de uma descoberta à época após uma experiência pessoal, e que acaba por conversar com o tema das minhas pesquisas e inquietações atuais.

“Engraçado, mas me peguei pensando algo hoje, por mais uma vez. Na sessão de fisioterapia, me senti estranho, pela segunda vez, quando a fisioterapeuta limpou os meus joelhos dos resíduos do álcool. Fiquei estranho, com rubor abaixo da pele, meio sem jeito e com uma vontade de tomar-lhe aqueles papéis-toalha e limpar-me! O primeiro pensamento foi que ela me achou algum tipo de incapaz ou algo do gênero. Com certeza, tomaria isto por ofensa e ela perceberia meu incômodo. Entretanto, com ambas as profissionais, notei que fazem por hábito, mas que não deixa de ser uma gentileza aos pacientes que tomam aqueles choques para aliviarem suas dores nas mais diversas áreas, para se recuperarem do que quer se tenham quebrado ou machucado.

Meu sentimento, após ver as boas intenções destas pessoas, foi de vergonha. Digo isto por perceber que não estou acostumado a receber gentilezas desse nível, pequenas e carinhosas. Sou daqueles que é capaz de se ofender com tais coisas, pois foi como se desafiasse minha capacidade. Percebi que sou um lobo solitário, que raramente peço para alguém me fazer algo por fazer, como carinho. Geralmente está baseado numa troca, numa relação racional, como um negócio ou indo mais fundo, no velho “uma mão lava a outra”. Isso não é confiança, tampouco carinho. É o dar pra receber, ou simplesmente fazer por mim. Só espero estas coisas da minha mãe, mas mesmo dela, em algumas situações me sinto envergonhado em receber. Poderia questionar-me porque um simples gesto de limpar joelhos fez-me refletir tanto? Não sei, apenas sei que fez. Talvez a solidão, que paradoxalmente é a minha companheira, me faça estranhar tais atos. Talvez por tanto esperar, ou simplesmente achar fraqueza esperar, eu sempre o fiz, mesmo quando não deveria, quando não poderia, eu fiz. Fiz por mim, limpei por mim, nunca querendo dar trabalho aos outros, incomodá-los.  Este é um ponto que me irrita muito, nessa mania violentadora de me adequar aos outros, de me sentir mal por incomodar. Às vezes incomodar é o sinal que está ali, que você pede por algo, que necessita mostrar a sua existência.

Sempre me orgulhei do bebê e criança que fui. Não será daí onde nasceu toda a minha insegurança? Uma criança que chorou pouco, que não fez escândalos, que deste pequeno sabia dos limites e os introjetou de forma tão eficaz? Explica muita coisa. O medo de pedir, a ligação com o outro como uma barreira longa e larga, que vai afinando com o tempo, sem deixar de ser penoso. É esta penosidade que me faz levar as coisas de forma solitária, pois é mais fácil, sendo amargo também. Sou solitário com todos, mesmo com minha mãe, irmãos, namorada e amigos. Pouco converso com quem efetivamente amo, apesar da importância dessas pessoas na minha vida. 

Sempre por si, com o fardo da solidão, estranhando a simplicidade de uma generosidade. Mudar, negão. Conhecer-te. Fortalece tuas amizades, pois isto é te fortalecer, é saber que teus estranhamentos tem prazo pra terminar, ou para desalojar-se do teu ser. O processo tá andando, é só prosseguir e aprofundar.”

Quase 8 anos deste texto em que escrevi pra mim mesmo, e consigo perceber que mudei bastante, mas parte da estrutura se mantém. Como que me pondo de pé, a muito custo. A escrita me ajudou sobremaneira, a me rever, a avançar, e ainda há muito a fazer. No intuito de ser a melhor versão possível de mim, em benefício dos meus e minhas.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 25 de julho de 2019.

Os falsamente desiludidos…

O dito “desencanto” com o B.O. não é nenhuma surpresa. Em pouco mais de 6 meses, houve um despencar na aprovação de seu governo junto à população, fazendo da euforia com sua eleição se tornar na aprovação mais baixa a um presidente eleito desde a redemocratização, com o mesmo período de mandato. As pessoas que lhe deram voto, muitas de maneira entusiasmada, fizeram o mesmo movimento de sempre: acreditaram num messias político, num gênio da lâmpada que faria todos os problemas se resolverem com um estalo de dedo, sem precisar ter nenhum conhecimento prévio para fazê-lo.. Há uma perspectiva magico-idólatra em figuras populistas, uma certa aura de midas que, via de regra, nunca se confirma. Mas mesmo assim, elas sempre aparecem e se firmam no cenário de maneira catastrófica.

No fundo, nada se aprende com o histórico político brasileiro. Há os que se aproveitam desse dado para fazerem seu nome e capital, e outros que são apenas telespectadores de uma mesma novela, que mesmo sabendo o final, torcem em esperança para um final diferente, mesmo tendo assistido várias vezes aquelas cenas.
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No fundo, os desiludidos com Bolsonaro preferiram se agarrar a fé em um salvador, mesmo diante das evidências de desabono, porque é mais fácil ter um responsável caso a lua-de-mel se torne lua-de-fel. A responsa tá sempre no outro. A fé tá sempre no outro. Até que ponto este componente de fé cristã no impossível é também uma medida de pleno desespero e desesperança no porvir, a sempre esperar um milagre de onde nunca houve a mínima suspeita, a mínima vontade de ser diferente, a mínima fala que endossasse tal fé e apoio.
O componente humano, com todas as possibilidades que lhe cabe, abre brechas para coisas estranhas: eu comparo o apoio dos agora desiludidos ao B.O. o mesmo que esperar a colheita de arroz no deserto do Saara, e quando ela não ocorre, eu ficar triste com a situação. Sem uma preocupação com o clima, com o terreno, com a temperatura, mas só com o meu desejo de colher algo do meu interesse em qualquer solo, como um ato apenas de fé, de esperança.
O componente humano tão maravilhoso como a fé, quando a serviço da desesperança, da desinformação, manipulação e do simples ódio, produz estragos tão palpáveis como uma guerra em curso.
Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 12 de julho de 2019.

Malcolm X e o uso de seu legado

Texto escrito em 05 de fevereiro de 2017 e atualizado este ano

Tem um processo de branqueamento nítido que as ideologias não-negras fazem sobre ícones negros. Quando digo branqueamento, entenda a retirada da radicalização dos seus atos e idéias. Se pensarmos Bob Marley e Nelson Mandela, vemos que foram transformados na pomba branca da paz, quando na verdade lutaram contra a opressão, seja por meio das letras e postura, seja pelo endosso à ação armada numa Áfrika colonizada.

Nesse sentido, pensemos em Malcolm X. Será que diante de uma figura tão incisiva no combate ao racismo anti-preto, esse branqueamento teria espaço? A saída do Malcolm da Nação do Islã e sua peregrinação à Meca tem sido o vetor pelo qual diversas matizes tem tirado Malcolm de um espaço de contestamento racial para inseri-lo numa perspectiva de classe, do abandono dum discurso anti-supremacista branco para um anti imperialista, como se ambas as coisas fossem distintas.

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Malcolm despontou como figura pública em meados dos anos 1950, proferindo inúmeras palestras sob a visão da Nação do Islã, e este período no qual estudou e afiou a sua visão crítica sobre a hipocrisia dos brancos nos estados unidos, acaba por ser trocado por um período de bases em construção, de uma ideia e organização (Organização da Unidade Afro-Americana ou OAAU em inglês) que estava se estruturando para apresentar uma proposta diferenciada da qual ele havia rompido.

A questão é: há um vácuo pois é um momento do Malcolm de reformulação, e com a sua morte, abre possibilidades de entendimentos variados sobre quais seriam os caminhos que ele seguiria. E nesta transição, se aloja a perspectiva de branqueamento. Malcolm então seria a favor de casamentos interraciais, trabalharia com brancos em sua organização, e outras ideias que não sabemos se poderiam se confirmar ou não. Troca-se mais de 10 anos de um posicionamento duro, enérgico e sem tergiversação por outro que deveríamos estudar mais a fundo, ver quais são os ideais de luta.

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A perspectiva panafricana continuou, mas os outros posicionamentos do nosso irmão tem sido escritos no seu pós-morte ao sabor das ideologias que querem fazer uso de sua figura, de liberais que temem a radicalidade do seu tempo de Nação do Islã a uma esquerda que o pinta de vermelho sem o mesmo ter dito isto. Minha preocupação é com o legado que querem colocar. Pois se o melhor momento de Malcolm for o momento em que as palavras e os ideais são mais interpretados do que os realmente ditos por eles, El Hajj Malik Shabazz será mais um que terá a história em favor do povo preto e da união preta sendo deturpada ao sabor de ideais outros que não contemplam a elevação da nossa dignidade enquanto povo descendente do Continente-Mãe.

Que neste 19 de maio seu lago de luta e amor por nós continue a ecoar!

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares).

Afeto como legado..

O que parece ser um paradoxo, mas estar em contato com temas relacionados ao universo masculino me fez mais sensível. Na descoberta dos vernizes secos, das nossas tentativas de sermos o que fomos talhados para jamais atingirmos, eu fui descobrindo a humanidade que nós nem pensamos para nós mesmos.

Um processo de auto-descobrimento que, mesmo com todo o limite, tem me permitido mudar. É muito louco como hoje eu abraço os irmãos que me são esteio, que me permito ter afetividade. O quanto que isso me transformou em um homem mais seguro.

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Homens tem dificuldade de receber afeto. Não é sobre sexo, é sobre afeto/carinho gratuito. É como sempre que tivesse que estar no campo da troca, do receber pra dar. Eu mesmo já questionei diversas vezes afeto gratuito, como um sinal de “moleza”, ou de desconfiança. Como se só diante de algum feito eu devesse receber aquele prêmio. A simples existência não condicionava a ter direito. No fundo, é desapreço embebido em honra, moral, orgulho. Nós temos orgulho da esterilidade emotiva. Calculamos aí a nossa força. No estar só, na total independência ou na extrema dependência do que nos rodeiam devem ter de nós. Existem poucas coisas mais anti-afrikanas do que esta percepção, que no fundo é uma ilusão corrosiva do ser.

Temos bebido água envenenada pra fortificar o corpo e a mente. É preciso limpar. Filtrar.

Precisamos nos descobrir saudáveis, honrados, orgulhosos nos afetos que compartilhamos de maneira fraterna uns com os outros. Vivenciar relações mais sensíveis, que nos permitem desfrutar da nossa profundidade enquanto seres humanos, sendo a solução do que nos é negado: compartilhando humanidade.

Nossos filhos merecem uma vivência de afetos como herança. Mesmo em meio à guerra. Mesmo em meio ao racismo. Precisamos lhes dar o antídoto que permita serem melhores do que, diante das experiências que tivemos, a gente talvez jamais consiga ser.

Pensemos a afetividade como real legado pra próxima geração de homens pretos.

*Foto de Eric e Faruq Ellis, do Instagram
** Foto capturada no Google

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 28 de março de 2019.

Bolsonaro, o caos e o umbiguismo (a)político

Tô tentando escrever sobre estas fitas do governo, mas é realmente difícil. Este texto é meio que uma tentativa.

            É um governo sem padrão, porque simplesmente não é o presidente que governa; ele reage.. Eu já tinha uma ideia que seria dessa forma, mas a inaptidão bolsonarista e o tipo de regime que se segue (o poder foi capturado por um clã familiar que não tem ideia do que seja o Brasil e instituições) busca fazer terra arrasada no que crê saber fazer e deixar a água rolar no que não tem a menor ideia. A política é doméstica, como se estivesse organizando a casa dele na barra da tijuca, não um país. Por não saber o que fazer e onde se sustentar, se sustenta no medo. Ataca qualquer grupo que possa lhe tirar base de poder, inclusive os que ainda lhe dão aval. Todos governam menos o presidente: os ruralistas, o mercado, os filhos do presidente. É como se o pai tivesse em coma e eles tivessem a procuração escrita. A sanha de poder dos filhos é maior que a do pai, porque querem o espólio político dessa posição. É o seu momento estelar, de brilhar, mesmo que pautado na destruição desmedida do pouco construído até agora.

            As trapalhadas mostram que o intuito não é exatamente governar, mas ter um projeto de governo pautada exclusivamente numa miopia, numa realidade fantástica no modo de conceber o mundo e o direito dos outros. O clã bolsonaro se sente imbuído de prender o mundo numa ótica cristã, branca e heterossexual. O que tá pra fora disso, é passível de ser destruído, ou de estar numa posição de subjugação ao status quo. É perceptível que o horizonte das ações e do pensar os impactos é bem curto e limitado, quase como se o governo do país se equiparasse à condução das problemáticas domésticas. Em suma, o bolsonaro (des)governa o brasil como se este fosse o quintal de sua casa, permeado pelas mesmas questões e pelas mesmas relações.  O que estiver para além das questões da qual ele minimamente consegue se posicionar, ele delega sem o mínimo pudor ou tentativa de entendimento. Por isso os superministérios, os ministros intocáveis, que seriam as lentes enviesadas duma realidade que ele se nega a entender. O presidente é a excrescência do pensamento branco contemporâneo em uma visão estúpida: o que ele não entende/concorda, não presta e precisa ser destruído ou deslegitimado. O presidente de uma república continental se comporta como o dono de um boteco pequeno que jamais pôs os pés para fora do bairro. Que o bairro e as relações ali mantidas são a explicação necessária para toda a gama de complexidades existentes em todo o país.

          O ponto é que esta prática e visão tão encurtada afeta não apenas as bases opositoras, mas também as bases econômicas e culturais dos muitos que lhe deram apoio político de ocasião nas eleições. A falta de um cursor político e as ações atabalhoadas já indicam prejuízos palpáveis e outros que podem indicar tensionamentos ainda mais graves aos já existentes no país. Na esfera econômica, a queda nas exportações e o atendimento vassalo aos interesses do governo Trump com relação aos chineses, já mostram impactos nas exportações e nas produções no mercado interno de alguns produtos; na produção científica, os ataques às universidades públicas, sobretudo as áreas de Humanas e o corte nas bolsas indicam um processo inicial de letargia ou destruição da ciência nacional, que teve folego acelerado na última década; e por último, o decreto com a aprovação dos treinos de tiros e extensão do porte irrestrito de armas, num atendimento aos ruralistas e ao tensionamento agrário nas disputas por terras em várias regiões do país, sobretudo com os indígenas e quilombolas. A intenção é tornar o brasil um grande latifúndio sobre a égide neopentecostal.

            A resistência está colocada, mas a reversão de parte desta sanha megalomaníaca será de longo prazo se for plenamente instituída. O êxodo de brasileiros parece avizinhar-se, diante do caos que se aproxima. A reprodução fidedigna dos momentos pré-ditadura parecem estar plenamente ensaiados. No entanto, não são favas contadas. A própria base do governo é um ninho de várias especies, que se engalfinham pela preponderância num governo débil no controle. Os militares se cansam do desgaste de sua imagem e do apoio do clã ao “guru” Olavo de Carvalho. O tripé desse governo jamais foi sustentável a longo prazo devido a inaptidão política de quem governa, e parece ainda menos diante dos efetivos ataques intestinos pela gerencia da máquina.  Fora o que ainda se desdobrará na questão das milícias, dos quais o clã está envolvido até a medula.

            Ele ainda está no poder por conta que todos os conglomerados estão unidos pela reforma da previdência. Todos votaram um certo armistício – já que o mercado assim exigiu – para aprovarem esta catástrofe. Tão engolindo os sapos bolsonaristas por conta desse compromisso. Mas ela sendo aprovada ou não, as baterias vão atacá-lo da mesma forma que atacaram o Collor. O efeito deletério de sua gestão (sic) afeta a todos, inclusive os setores que o apoiaram. Hoje ele é uma inconveniência necessária, mas com data limitada pela Deforma previdenciária. Se ele ainda não se tocou disso, burro não é a palavra. É anencefalia.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 10 de maio de 2019.

 

Estudar o racismo não basta…

Uma afirmação: não podemos ser apenas especialistas em racismo. Acho importante sabermos seus desdobramentos, suas aplicações práticas e simbólicas em nossas subjetividades e corpos, mas não podemos parar aí. Ser um entendido sobre o racismo, dischavar suas lógicas sem ter em mente um processo de transposição ou de diminuição do impacto é abrir crateras em pequenos buracos. O entendimento sobre o racismo, quando o obtemos, é como um veneno induzido ao corpo, que se não acharmos o antídoto, nos paralisa, nos sufoca.

Entender é apenas uma das etapas, mas uma bastante perigosa se não se vê pontos de combate, de fissura. É um assunto bem penoso e custoso a nós para que ele não seja apresentado sem uma perspectiva de luta, de enfrentamento. Sem esta visão, só espalhamos o veneno junto com aqueles que os aplicam forçadamente.

No meu entender, ser afrikano-centrado é uma resposta ao racismo, buscar conhecer nossa História, nossos processos de luta, nossas falhas e nossas pequenas vitórias (estamos aqui, né?). Há outras tantas possibilidades de ação, de mobilidade e atividade em pról do seu povo. Conheça e aplique.

O racismo paralisa. Nosso dever é diminuir o poder do veneno, e pra isso precisamos agir. Busque o que tu faz de melhor e entrega nesse combate, o mais velho já disse.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 23 de abril de 2019.

Nos Homens Pretos, a obstinação do Caçador

Pensei em escrever um grande texto, mas acho que poucas palavras vão dar o entendimento do que quero dizer.

Olho os homens pretos que almejaram suas conquistas, seu lugar de fama e sucesso (comercial ou não), e penso no esforço que fizeram. No hiper-foco, em como fizeram dos seus sonhos a base real de suas vidas, o ar que respiravam. To falando de músicos, de futebolistas, mas também dos mais comuns, Onde tudo ficou pra trás, ficou pequeno diante do que queriam conseguir, do que almejavam. Numa sociedade que exige que você seja bom em tudo a que se propõe, eles decidiram ser bons em uma coisa. E se dedicaram, com perdas sim, com vária críticas, por não serem bons em outras áreas ou não estarem disponíveis em momentos ou lugares que também lhe seriam importantes. Com o ônus, até o apogeu.

Como vejo Odé nestes homens. Como s vejo como Oxotankoxoxo, o Caçador de uma flecha só, que deve atirar para acertar, pois é a única que tem, Nisto a gente entende o hiperfoco, a resiliência. Matar a grande ave (as agruras do destino) e salvar a aldeia (a si mesmos, aos seus). Louco que por vermos muitos em áreas de entretenimento, não nos atentamos pro grau de investimento que eles fazem, que suas famílias fazem, transformando-os também em flechas salvadoras.

Não que tenham se tornado os melhores seres humanos do mundo, sem defeitos, traumas ou dores, mas esse elemento de dedicação, é algo bonito de se ver. Da tentativa da perfeição, da repetição, para que quando for momento, não haja falhas, para que a corda no arco vibrasse uma única vez!

Saúdo a vibração de Odé que cada um temos em nós na busca de nossos objetivos!

Olojo Oni, mojubá! Okê Arô!

Agradecido ao texto do pai Roger Cipó nestes dias. mas associações tão interessantes entre nós e nossos pais ancestrais, Adupé!

Também faço deste texto uma homenagem ao meu irmão Fábio Kabral, o Omo Odé mais obstinado,focado e certeiro que este Aiyê já viu (e ainda vai ver)! Aquele que me ensina que todo sonho e objetivo deve ser sonhado, para que a realidade desejada possa se tornar real! Uma fábrica de incentivos, pela sua própria trajetória de vida.

Também faço uma homenagem ao mano Pedro Ankh. Tua luta num tá passando despercebida, nego! Há de virar. Afia a pontaria pra tua caçada!

Aos meus irmãos, meus respeitos!

Aos homens pretos, que tenhamos a fibra e o foco de Odé na busca de nossos objetivos, para a fartura daqueles e daquelas que nos rodeiam!

Axé pra noiz!

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 25 de abril de 2019.

Amizade descartável entre homens negros

Homens recuperam amizades com outros homens depois de um conflito? Na minha percepção (que é cruzada por vários pontos que me formam e informam aos demais), amizades masculinas quando trincadas, são vistas como vidro espatifado. A rigidez dos códigos masculinos e uma certa inabilidade de mostrar a importância da presença do outro na vida (quando tal presença é benéfica) faz com que amizades longas sejam perdidas por conflitos que, pela amizade, se deveria mediar.

Homens se descartam, apesar dos afetos sentidos. Pontes que já eram frágeis para diálogos francos sobre pontos sensíveis(pois quase inexistentes) são implodidos para absolutamente nada ser colocado no lugar. Apenas a observação do que existia ali, com vários receios de reconstruções. Os espaços são mínimos para desacordos, tão comuns nas relações humanas.

Já passei por isso, passo ainda, e acredito que vários irmãos pretos passam também. O “ser firmão”, nesse caso, nos desmorona. No fundo, somos sozinhos. Não no sentido em voga discutido, mas com receio de abrir mão do que parece ser a única nesga de “dignidade” que essa sociedade nos permitiu ter.

O silêncio parece ser o parceiro mais íntimo. Já que impede o “arregar”, e ele só é quebrado para reafirmar o eco de onde jazia uma ponte ligando tais amizades, para reafirmar a força, a posição invulnerável, mas de difícil sustentação emocional.

Homens Negros se toleram. E apenas na medida que sua vulnerabilidade não são exposta ou tocada, o que dá uma margem muito pequena de não-conflitos.

Vários lutos em vida. Por não sabermos realmente trocar, por termos um entendimento bem parco do que seja resolução. Até quando sem ampliarmos a dimensão do real significado da amizade e do afeto que dela deriva?

Obs: Este texto foi feito de maneira simultânea à leitura do capítulo “Waiting dad to come home“, do livro “We real cool“, da instigante bell hooks.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), em 18 de março de 2018.

Crise na Venezuela e os avais da guerra..

Afora a incapacidade do Maduro, você já se perguntou do porquê da crise na Venezuela? De como as sanções formam crises e necessidades na população para que o governo seja culpado pela mesma? Dos jornais brasileiros seguirem um script que direcionam a opinião pública para um desfecho que pode ser até mesmo violento? Ou ninguém se pergunta da extrema xenofobia em Roraima de poucos meses atrás se transformar em aceitação dos fugitivos do regime?
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De “presidente” Maduro, transforma-se em ditador.. a alcunha já impõe o sentido moral e politicamente negativo, e essas mudanças foram as chaves introdutórias para as invasões e golpes que vieram em seguida: Síria, Líbia, Egito.

A guerra para introduzir a paz e debelar a crise(intensificada externamente) tem sido o novo modelo de guerras e conflitos instituído ainda por Bush filho, desde a guerra contra o Iraque. Por isso a crise, o caos, as notícias de desgraças são tão importantes: servem como chaves cognitivas que possibilitam o aval para uma ação violenta, no que num estado de maior controle, todos seriam contra.

Esse modelo de intervenção não é nem um pouco novo. Para referenciar a Conferência de Berlim (1885) e a partilha do Continente-Mãe entre as potências brancas, foi feita ma intensa campanha publicitária mostrando o primitivismo e o caos reinante em Áfrika, restando aos brancos, “supra-sumo da civilização”, a tarefa de civilizar aquela terra e aquela gente sem deus. Nesse contexto que o poema “O fardo do homem branco” (1899),  do britânico rudyard kypling surge e mostra em quais premissas (falsas) se baseia as intervenções dos brancos, fazendo assim uma ode ao colonialismo. Assim, se tem buscado argumentos que mostrem a nobreza da ação, quando se escondem os reais interesses para a mesma. No caso venezuelano, o argumento é o sofrimento do povo, a fome, o desabastecimento, a violência do governo. Mas no fundo, pouco disso importa, já que o foco é apenas a destituição de Maduro.

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A pergunta a ser feita é: qual dos países acima citados estão numa posição melhor depois que estas chaves foram utilizadas e esses avais foram dados?
É preciso pensar pra onde se tem apontado como solução. O bloqueio diplomático a Maduro e a aceitação do auto-proclamado presidente Guaidó arrefece a crise, mas no médio e longo prazo, para onde leva a Venezuela? Qual será o futuro do legado chavista nesta perspectiva solucionadora que se tem apontada? Nada se aproveita? Questões que devem guiar quem se interessa pelo futuro do país vizinho, seja com Maduro ou sem ele na presidência do país. E o bendito petróleo e a reserva venezuelana, que parece infinita?
A Venezuela é o novo palco de uma guerra fria que tem se desenvolvido com o declínio dos estados unidos como única superpotência, mas ainda com influência, principalmente no seu “quintal” americano, ainda mais no brasil-bolsonarista-trumpetista e o aumento de poder e influência de china em combinação com a rússia. Áfrika é palco destes embates já não tão subterrâneos, assim como o Haiti e suas ruas, que já pedem intervenção russa no país como contraponto aos americanos.

O xadrez geopolítico está se movendo, como as placas tectônicas e seus atritos sob a superfície terrestre. No entanto, as vítimas destes choques parecem ser as mesmas, por mais que se altere as forças de quem pressiona.

Por: Thiago A. S. Soares (Tago Elewa Dahoma)

Texto escrito em 27 de fevereiro de 2019.

Afrika x china: um quintal amarelo..

O nome “China” significa “Reino Médio” em mandarim. É extremamente significativo pois encarna a alma coletiva dos chineses quanto ao seu papel no mundo. O nome deriva da crença que o Reino da china é o que separa o reino dos homens do reino dos deuses ou além, ou seja, eles estão acima de todos os outros povos.

O que vemos hoje é a china na busca desse ideal, atacado pelo imperialismo britânico no século XIX, colocando o império chinês num lugar de servidão, tendo os seu mercado forçosamente aberto ao Reino Unido. A vergonha de ter sido obrigada a descer do pedestal “sobrehumano” que se colocaram, em minha singela e humilde opinião, dos fatores da agressividade dos chineses em galgar uma posição, que para eles, jamais deveriam ter perdido.

Olhando o governo “socialista”, podemos ver que ela é uma revolução com objetivos internos, de mudanças sociais e econômicas, como se quisessem fechar-se para se recuperarem do tombo dos imperialismos externos (britânico e japonês). No entanto, mesmo com as transformações socioeconomicas e do verniz socialista em uma base capitalista e ultracompetitiva – no mercado externo, diga-se de passagem – vemos que a cultura é o elo, embasado e embalado neste ideal, não sendo modificado por nenhuma diretriz econômica ou política. O retorno à grandeza mítica é o alvo. A noção é a mesma de quando eram uma monarquia.

Olhando a postura agressiva comercial dos chineses no mundo, sobretudo na Afrika, comprando terras e “desenvolvendo” as infraestruturas ferroviária, de portos e estradas dos países para logo em seguida lhes tomar o que foi construído e tudo o que for possível mediante dívidas contraídas, mostra que para recuperar o seu lugar como império, como uma civilização que achava os não-chineses bárbaros, a disposição é total e inequívoca.

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(https://noticias.r7.com/internacional/poder-em-expansao-china-investe-pesado-na-reconquista-da-africa-10092018)

Esse tratamento pode ser visto na ocupação do Tibet em 1950, com as esterilizações e estupros de tibetanas e atulamente, com a prisão de quase um milhão de uigures (etnia de maioria muçulmana) no sul do país

Ao contrário dos eua e europa, ou seja, um modelo que molda as percepções via religião e educação dos povos dominados, os chineses não estão preocupados em converter as pessoas à sua cultura. A servidão será via força militar e via economia. Os seus valores culturais, muito caros, servem apenas aos seus cidadãos. A força numérica com certeza influencia nesse olhar, além de outro elemento muito conhecido por nós: Raça. Ser da etnia Han (majoritaria) é ser de fato chinês aos olhos do governo, apesar das dezenas de etnias que vivem no país.

Podemos pagar de românticos e falar o quanto estão moralmente errados, que eles deveriam pensar na situação dos países em posição mais fraca. Mas a culpa não é totalmente deles. Eles seguem a lógica a qual foram submetidos: tratamento atroz a quem não puder reagir à altura. A culpa é de quem não consegue impor sua barganha. Afrika está sendo tomada por conta da mentalidade de capanga dos governantes, mais interessados nas relações com os antigos mestres do que com o povo. Enquanto o Continente não for visto do ponto de vista do seu capital humano, seremos o quintal dos outros, dos interesses, sonhos e objetivos alheios, sendo acossados como ovelhas em campo aberto.

Espero que os afrikanos e afrikanas ao redor do mundo possam aproveitar a próxima janela de oportunidades para desenvolver e livrar o Continente de seus parasitas, e pelo que me consta, vai demorar..

O Teto de vidro e a popularidade-fumaça..

Se quem manda nessa birosca são os rentistas, to imaginando o veneno que este escândalo com o filho do B.O. deve ter causado nessa turba. A popularidade do B.O. e família é gelo seco no calor do hell de janeiro: vai virar fumaça em curtíssimo tempo. O novelo com esse caso do b.o. júnior vai enredar todo mundo, e desse saco vai sair muito mais surpresas.

Não dá pra colocar esse escândalo como cortina de fumaça, já que a base de suporte do B.O. é instável, assim como tá muito fracionada as forças políticas no Congresso. Pra maré virar, pra não apoiarem a Reforma da Previdência, legado do último governo em conluio com o mercado financeiro e principal motivo para apoiarem o capitão, é dois palitos. O apoio ao B.O. foi feito alheio à sua participação, sendo ele uma catarse de sentimentos, de ideias vis. Por ser a expressão de um sentimento, ele não é insubstituível. Basta ver o racha da bancada de seu partido (PSL), que mais parece uma rinha de galos de tão unidos.

Impossível as mídias hegemônicas não saberem destes podres da família. Uma investigação com mais empenho  e tinham descoberto as primeiras falcatruas da família B.O., se pá do pai nos seus primeiros anos como deputado. Cuidado num parece ser o melhor atributo do pai, tampouco dos filhos. Acabou que usaram o arsenal a partir da guerra que o próprio B.O. travou com as emissoras e jornais, mas o uso destas denúncias -e aí que ta o pulo do gato – tinham um momento exato: após ele ganhar a eleição, impedindo assim a volta do partido dos trabalhadores ao poder. Importava ele ganhar, ganhar o plano que lhe dá sustentação política – ruralistas, financistas, rentistas, e a renca que representa a ala pobre, mas vigorosa com os policiais e evangélicos- para que depois, se abrisse o rosário de seus pecados e de sua família.

Veremos o fritar de um governo. Com uma base instável e com um escândalo que corre o risco de fazer a debandada da posição antes mesmo da nova legislatura começar.

A questão não é “se” vai cair, mas “quando”.

Mourão espreita, sem nada a temer. Assim como o ex-vice-presidente.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 21 de janeiro de 2019.

Eleições 2018: a vitória dos ressentidos

Fiz algumas postagens que foram em última instância, pequenas análises dos momentos eleitorais e do perfil dos candidatos, assim como das sensações e temperamentos do eleitorado. Creio que este texto será o derradeiro sobre o processo eleitoral que elegeu o candidato do PSL, jair m. bosolnaro. Comecei em novembro com o término já em 2019,  com alguns meses da eleição e passagem da faixa presidencial ao ex-capitão do exército. Foi importante deixar passar o tempo. Não muito pra não perder o fio da meada, mas também não tão pouco pra deixar que o furor e o pessimismo fossem os únicos guias destas linhas.

O que se pôde testemunhar é que a a ascensão e vitória do bolsonaro aglutinou uma camada muito grande e diversa da sociedade brasileira, das quais a maioria era volátil e votou por questões pragmáticas (mesmo que totalmente equivocadas e manipuladas): por o verem como uma figura nova, logo, com possibilidades de acabar com a crise econômica e desemprego, com os males da corrupção e outros desvios que tem feito parte da rotina de grande parte da população desde sempre, mas com especial atenção nos últimos 4 anos devido à exposição da Operação “Lava-Jato”.

Mas uma parte dos apoiadores do candidato vencedor o escolheu por tudo o que ele de fato representa: uma guinada política e ideológica como reação aos avanços dos grupos “subalternizados”, que ganharam um outro patamar na década passada, com os governos petistas.  Dois grupos se sentiram especialmente lesados com tais avanços: a classe média branca (e os satélites que ganham menos, mas se sentem no mesmo grupo) e parte majoritária dos evangélicos.

Para o primeiro grupo, o avanço das políticas de transferência de renda e o desenvolvimento econômico do país na década passada teve impactos profundos nas relações de trabalho com os mais pobres. Houve um deslocamento nítido na concepção dos “subalternos” quanto à qualidade do trabalho, com um nítido desafio ao viés escravagista dos contratos e das relações. Questionamento às condições, à paga, à contratação fez com que se buscasse os culpados para estas mudanças: além dos próprios, e também dos que possibilitaram com o partido dos trabalhadores, e por conseguinte, do seu líder máximo, Lula. Dentre tantos exemplos, um desses pode ser vista neste trecho:

Em São Paulo, a escassez é tamanha e os salários estão tão altos, que virou moda importar babás do Paraguai e da Bolívia (leia entrevista na página XX). Diante desse cenário, já se especulou até que as babás são uma profissão em extinção, mas os especialistas tranquilizam os pais dizendo que não – não desaparecerão. Mas há, sim, uma mudança em curso: elas caminham para se tornar um artigo de luxo, para poucos, como já se vê nos Estados Unidos e na França.

(http://revistadonna.clicrbs.com.br/noticia/quer-uma-baba-entre-na-fila/)

Um outro patamar nas relações sociais e raciais estava sendo forjado, com perda de espaço destes mais ricos frente aos demais. Não se trata de perda de dinheiro, de que o pobre tenha ganhado mais, porque este grupo também ganhou; trata-se da perda simbólica de poder, do mandonismo desmedido e da distinção que o acesso a bens provia a estes brancos frente aos não-brancos. Historicamente, a sociedade branca se constitui como tal em contraposição às demais, e no Brasil, em contraposição aos pretos e indígenas. Portanto, estreitar esta diferença foi vista como perda de terreno por parte de quem se viu e brigou para ser o pólo-matriz das relações. E para uma sociedade escravocêntrica, é preferível afundar o barco com todos dentro, do que permitir que o convés seja dividido com os que vivem no porão.

Para o segundo grupo, o sentimento de perda foi dos valores morais. Os avanços econômicos que também usufruiram não minou a noção de perda de uma ordem estabelecida, com avanços dos direitos sociais das mulheres,dos negros e dos gays, sobremaneira. Uma ética baseada numa vivência cristã estaria ameaçada pela inclusão nos currículos escolares da cultura afro-brasileira, do famigerado kit gay e no campo das relações de gênero, as mulheres numa revolução aos padrões masculinos. Isso foi entendido como uma guerra declarada ao ordenamento cristão de como o mundo deveria ser. O despedaçamento do mundo estava encarnado em Lula, mas mais enfaticamente em Dilma, com seu perfil pouco ortodoxo frente aos demais: pouco feminina (indócil), divorciada e possivelmente atéia.

A noção da perda de terreno político e simbólico, da mirabolância e crença destes minúsculos avanços (em vias de serem extintos) formaram um apoio substancial à vitória do bolsonaro em outubro.  Ele, portanto, foi um candidato do desalento, da busca da esperança numa visão idílica, onde todos pareciam mais felizes, sem tantas regras e contestações. Obviamente, esta é uma nostalgia fabricada, mas esta é a visão que permeia as falas e pronunciamentos do candidato eleito e de seus escolhidos para governar, pontuando a necessidade da volta aos padrões anteriores de mundo, no qual tudo se encaixava, tal como um quebra-cabeça perfeito, onde os lugares de todos estava muito bem definidos pela cultura escravocêntrica e cristã, sem permissão para grandes questionamentos.

O que se busca no fundo é uma segurança mítica, calcada numa falsa sensação de ordem antes das mudanças promovidas na década passada. É isto que bolsonaro encarna, com suas falas desencontradas e pouco articuladas. É a reafirmação de um país branco em sua essência, embora se diga multirracial, e cristão, pouco importando outros credos e vivências religiosas. Os ressentidos buscam um mundo que dificilmente voltará ao mesmo eixo como outrora. Mas eles não vão se negar a lutar por este oásis (pra quem?), custem as vidas [subalternizadas] que tiverem de custar.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), dia 03 de janeiro de 2019.

“Tomar o poder por dentro”

Nós acreditamos que podemos mudar o sistema de poder por dentro, como se fossemos algum tipo de vírus. Mas olhemos quem conseguiu fazer isto. Olhemos o samba, a capoeira, os sistemas tradicionais de base afrikana. Vejamos quem agiu como vírus e quase tomou o corpo (os nossos, junto com a mente, mas acabou por lhe modificar as formas e muito do conteúdo). Faz ruir por dentro, retirando de nossos sistemas vitalidade, força e fundamento.

Para ação do vírus, é preciso vulnerabilidade do corpo, anti-corpos enfraquecidos. Com relação a nós, quando os toubobs estão desguarnecidos? Com guarda baixa? Eles agem como vírus, mas para nós agirmos dessa maneira em seus corpos (pensando as estruturas de poder construídas e gerenciadas por eles), temos de pressupor determinadas fraquezas que, por nossa condição, ainda não conseguimos aproveitar.

Antes de pensar em “tomar o sistema por dentro”, é preciso recuperar nossos corpos ainda infectados, fortalecê-los e expulsar o vírus. O corpo tem seus próprios sistemas de defesa. É preciso acioná-lo. É preciso ingestão de medicinas nossas. É preciso o estado febril, do combate interno.

Ele anseia por isto. Para quem sabe, se ter a condição necessária e vital para fazer o embate corpo a corpo.

Por Tago E. Dahoma (Thiago Soares), publicado dia 04 de dezembro.

Entre leões, hienas e suricatos: a quem serve uma Áfrika animalizada?

Pesquisar Áfrika como elemento turístico e perceber quais são as respostas. Dei uma olhada na rede social Instagram e fui ver as imagens. A grande maioria das fotos focaram nos animais do Continente-Mãe. O conteúdo imagético sobre o Continente é substancialmente alheio aos afrikanos que lá vivem, do que fazem e do que construíram. Isto tem questões mais profundas do que estas imagens parecem transmitir. Qual outro lugar na face da terra sofre um esvaziamento do seu conteúdo humano e elevação da importância animal tal qual o continente dos Serer, Ovibundos, Nuba e Xhona?

Se a Áfrika positiva é a dos safáris, da busca animal, o é na lógica de quem? Não pensar o Continente do ponto de vista humano valida o papel terceirizado que tem sido atribuído aos povos afrikanos nas narrativas europeias e asiáticas há pelo menos 1300 anos.

Se Áfrika é vista, lembrada e veiculada enquanto savana, qual a importância da tecnologia dos povos San, dos Twa, estes um dos mais antigos humanos a caminhar sob a Terra? Se Ela for um leão, qual a relevância dos Dogon na análise dos cosmos e dos astros e de suas descobertas séculos antes de qualquer pesquisa e observação astronômica na europa? Se for a observação de um manada de elefantes o ponto principal, qual o interesse nos kemethyus-cushitas e suas engenharias milenares, como as pirâmides e artefatos estremamente sofisicados aos olhos atuais? Sem tocar nas emoções mais cândidas* e intensas das pessoas, mas se olharmos qual o maior sucesso em termos de exposição “positiva”do Continente no mundo todo, não havia uma única pessoa como imagem, senão animais falantes. Obviamente, o megasucesso dos estudios Disney, “Rei Leão” (1994), prestes a ser reveiculado nos cinemas do mundo todo numa outra tecnologia de animação.

Afrika animalizada põe os povos do continente numa lógica que orbita o interesse turístico nos animais, como satélites, no qual a manifestação das culturas em suas danças, cantos e expressões fosse apenas o entreato do show principal. Como se a evolução destes povos fosse pareado com a evolução dos bichos (mais lenta aos nossos olhos históricos), vistos de uma maneira tão exótica quanto fixada no tempo, mas ainda assim, (semi) humanos em seus olhares turísticos.

Isto tem um sentido óbvio: de por um véu na real contribuição de Afrikanos e Afrikanas no desenvolvimento social e tecnológico de todos os povos que com eles tiveram contato.

Nos animalizar não é uma tática recente. Porém, o legado de nossa grandeza é vasto e profundo demais para ser apagado. Ainda assim, as tentativas persistem e se sofisticam.

Não há uma oposição entre nós e os animais. Não em nossas visões sobre a Unicidade das coisas. Mas o que definitivamente não podemos aceitar são as hierarquias postas, num nítido movimento de valorização ao que não desenvolvemos, porque não está sob controle da humanidade. Vendo um vídeo de um mais velho do continente* em uma entrevista, ele citava algo que me marcou profundamente:“Ninguém viaja à Áfrika para ver pessoas”.

Se não se viaja à Áfrika para ver as pessoas, logo, não se viaja para conhecer a história, sobretudo a que realmente deve ser pesquisada e difundida. Que façamos entre nós o objetivo primeiro então. Não apenas por resgate histórico frente às nossas lacunas. Mas para mostrar que Afrikanos e Afrikanas  em sua diversidade e profundidade civilizacional são um universo que a cegueira deliberada dos toubobs insistem em não perceber, com efeitos realmente pertubardores em nós, filhos do Continente-Mãe em todos os lugares do globo.

Por Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 21 de dezembro de 2018.

Obs: Vi o vídeo há pouco tempo e vi o nome do mais velho: é Hugh Masekela, um jazzista de Azânia (Afrika do Sul), que se encontrou com os ancestrais em 2018, aos 79 anos…..

Manifestar o Divino..

Me impressiona como é comum no credo cristão a menção a D’us e na sua proximidade das querelas humanas. Me impressiona o caráter demasiadamente humano em suas formas, modos de agir e punir os erros, e de recompensar os acertos. Aplica-se valores morais à Força que criou do àtomo às supernovas..

Gosto das perspectivas africanas de Divino, pois elas nos interligam a todos, fazendo de D’us uma conexão entre tudo. Portanto, falar de D’us como uma Particularidade faz pouco sentido, pois por estar ligado à Tudo, liga-se ao que não entendemos e compreendemos, logo, não se gasta tempo e energia no entendimento de Sua lógica.

Não quero entender D’us. Quero manifestar Sua Potência como Parte que nos liga.

Lembro de Chinua Achebe falando sobre esta Força Criadora no “Mundo em Despedaço”. Um personagem bem interessante, amigo de Ojukwo, personagem principal. Falando mais ou menos que “Deus é muito grande, melhor se relacionar com seus ajudantes”…

Não poderia concordar mais..

Por Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 18 de dezembro de 2018.

O choro é a solução? Das sensibilidades em meio ao terror..

Se diz aos Homens Pretos: chorem mais, se abram..
 
Aì eu penso como é que dá pra fazer isto num contexto de guerra, ou melhor de massacre, de ódio, de indiferença, de caçada, de extermínio e extremo terror. O que fica quando você está em contato com sentimentos de frustração, de angústia, de mágoa, de dor, de perda, de luto, num contexto que você pode ser o próximo a tombar por um movimento brusco, por uma acusação devida ou indevida, por passar na rua errada, estar no bairro errado?
 
As cachaças, os psicotrópicos, os porres, os sambas foram os refúgios, os escapes emocionais a uma estrutura desumanizante. O choro é ali aos borbotões, no transbordo pra num enlouquecer
 
Somos soldados em uma guerra da qual nunca quisemos fazer parte, sendo convocados a contragosto e participando como bucha. Àqueles que tem consciência do que é o racismo ou simplesmente tem noção do que é o ódio anti-preto em sua essência, sabem que tem que ser guerrilheiros em meios às vivências cotidianas. Se olharmos bem, o que foram os boêmios, Parte considerável dos malandros? Mestres na arte da sobrevivência.

Olhe o choro nos sambas, nas músicas escritas e cantadas com emoção.. Olha o choro na cachaça, no silêncio, no riso triste e no alegre,no sorriso que só arreganha os dentes mas num é espelho d’alma. Nos tragos e vícios..

É preciso olhar para o que este Homem Preto e entender quais foram as suas estratégias de sobrevivência física e emocional para não sucumbir a uma estrutura que o vê como caça a ser abatida deste o útero. E isto não é dizer que ele está conseguindo se manter firmão, mas ver qual que é do jogo.
 
As guerras costumam ter um fim. Assim, os traumas deveriam ser tratados. Mas e quando a guerra psicológica é ininterrupta? Transpassa a vida? E quando o terror te forja o comportamento, os limites?
Que Pai Preto hoje minimamente consciente e leal à sua família não pensa em passar pros filhos um manual que os permita viver o máximo de tempo possível num mundo que visa a sua eliminação constante? O que não fazer, como não reagir, como não provocar.. O amor que parece tirado dos livros do Sun Tzu..
 
Alguém já pensou nos silêncios masculinos como refúgio último da dignidade pra lidar com uma vida da qual quase nada se tem controle e que tá sempre em risco?
 
Aí continua a pergunta: chorar é a resposta? Chorar é descanso, é relaxo muscular. Quando que dá? Essa sensibilidade nesse caos tem de ser posta em outro lugar..

Eu penso nestas fitas e vejo que chorar nem rola. O que rola é só a lágrima caindo do olho pra umedecer. A sensibilidade tá em outro campo, tá num refúgio, num lugar sem nome. Pra se abrir em segurança, sozinho, sem ter chance pra arregaço e retaliação.

Mas estas são só brisas minhas, mesmo.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 30 de novembro de 2018..

Auto-ódio como motor das relações afetivas

Eu já devo ter escrito sobre isto em algum momento, mas acho que sempre cabe pontuar estas paradas. Nós somos o único povo que, ao se decepcionar nas relações intrarraciais, procuramos a solução em outros povos e de maneira mais intensa, com os toubobs.

Quando dizemos “não dá pra se relacionar mais com pret@s” sendo você uma pessoa preta, não é apenas os erros cometidos nas relações afetivas. É a assunção de algo errado de saída, do caráter, do comportamento, do histórico. É assumir a perspectiva racista que pessoas pretas ou são extremamente problemáticas ou não são de confiança, onde não se deve investir tempo e afeto na tentativa de construir algo conjunto. Essa desconfiança não fica restrita ao campo afetivo-sexual, porque é uma desconfiança irrestrita, logo, a todo o Povo Preto. Quem utilizou e construiu essa narrativa sobre nós fez isto durante séculos?

Temos a muito custo tentado construir uma narrativa que nos coloque no centro, que tenta por todas as vias nos fortalecer enquanto grupo, e na tentativa de surfar nessa “onda”, vários dos nossos mascaram seu racismo introjetado dando outros argumentos pra mostrar a sua aversão ao seu próprio povo, ou seja, a si mesmo. Ao dizer que estão “cansados de se envolver”. Me digam: que outro povo na face da terra utiliza tal argumento? O que isto diz sobre nós?

Não é uma regra, mas as escolhas com quem você decide construir e conviver no sentido íntimo dizem muito sobre as suas lealdades e sua solidariedade primeira.

Ainda temos projetada uma imagem distorcida de nós mesmos. Enquanto nos sentirmos “cansados” de outros pretos e pretas, a busca pela salvação sempre estará na brancura e em outras gradações raciais, o que nos coloca sempre numa condição de desequilíbrio.

Não existe avanço real sem comprometimento racial. O resto é mito grego.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), em 26 de novembro de 2018.

Reflexões sobre o trabalho doméstico e seus impactos nos relacionamentos negros

O emprego doméstico ainda é o maior empregador de mulheres negras no país. Pensando historicamente, é a continuidade do modelo escravocrata no país, o que significa em muitos casos o mínimo de direitos e uma carga de trabalho extensa.

Já vi algumas reflexões sobre a dificuldade destas mulheres na criação dos próprios filhos, em muitos casos no passado tendo direito a vê-los uma vez por semana ou não tendo tempo para vê-los direito por causa da jornada de trabalho.

Mas e no campo do afeto? E no campo das relações afetivo-sexuais? To pensando aqui como é difícil encontrar história de mulheres negras que foram domésticas nesse regime escravo e mantiveram relacionamentos duradouros com seus parceiros. Com o tempo todo dedicado a uma outra familia, como estruturar a própria? Outro dado que complexifica são os assédios sexuais que muitas sofreram e sofrem ainda hoje. Muitas dessas investidas resultaram em estupros, em filhos.

Estas situações vividas pelas empregadas colocava complicações em estabelecer parceiros longevos. A estrutura racial ao utilizar esta mulher como posse, a destituiu de muitas possibilidades.

Na Afrika do Sul (Azania) nos tempos de apartheid, os homens iam fazer o trabalho doméstico com medo da violência às suas esposas.

Infelizmente não tivemos essa possibilidade como homens por aqui, e por não podermos proteger nossas consortes, companheiras, acabou por arranhar nossa percepção enquanto homem.

Não pôde proteger do dono do engenho e seus filhos, o mesmo acontecendo com o equivalente no pós-abolição. Pensar o universo do trabalho doméstico sem homens, sem relações estáveis também é um reflexo de como os desdobramentos do racismo rebatem na desestruturação das famílias negras.

Por Tago E. Dahoma (Thiago Soares), em 6 de novembro de 2018.

A (falsa) morte da Utopia

Há alguns meses, eu tenho pensado na morte da minha utopia, na morte dos sonhos, do fantástico. Talvez as criações das realidades aqui no mundo virtual onde se maximiza tudo tenha culpa neste sentimento. Doses diárias de notícias deprimentes, de um apocalipse atrás do outro, alargando as rachaduras do bloco que permite a sanidade nestes momentos dificeis.
Percebi o que me parecia a morte da minha utopia diante de uma conversa, no qual eu via aquele fio de esperança, quase ingênua, com alguém que acreditava na transformação social via voto, via partidos, e tomei aquela esperança quase como um insulto. Depois percebi que aquela esperança, aquela expectativa era também um manto protetor das neuroses, o ânimo pra levantar da cama, o principio que permite tentar viver em vez de apenas respirar e e se locomover.
Senti inveja. Senti-me traído por mim mesmo. Como permiti que minha Utopia desfalecesse diante das condições adversas? Quis aquela ingenuidade, aquela esperança genuína, enfim, eu queria aquela proteção, como casa forte em meio à tempestade.
No entanto, percebi que o que tenho como princípio jamais foi ingênuo. Que a Utopia de pessoas pretas pouco fogem de seus corpos, das possibilidades que suas mentes e braços pudessem criar e prover. Percebi que a minha Utopia, igual a de milhões de pessoas pretas no Brasil, é estar vivo. Vivão e Vivendo, custe o que custar. E que nos nossos arranjos diários, as doses de resiliência e táticas de sobrevivência são indissociáveis do que projetamos pro futuro.
O mais interessante desse processo foi ver que enquanto eu achei que ela havia morrido em mim, na verdade eu sou esta Utopia, porque estou vivo e pretendo estar, não importa a intempérie. Eu sou os sonhos de minha mãe, de meu pai e de meus avós, e de todos os ancestrais que me permitiram estar aqui hoje.

Eu sou a viva Esperança deles e ds que ainda estão por vir e estar é a capa de proteção que tenho que ter pra enfrentar tudo e todos que se opuserem ao meu caminho.

Por Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 24 de outubro de 2018.

Eleições brasileiras e big data: as armadilhas nas redes sociais

Há um tempo, pelo menos durante estes dois últimos anos, tenho pensado no impacto das redes sociais nas nossas interações e nas perspectivas de realidade. Algo que me chamou a atenção do perigo do uso dos nossos dados foi a eleição presidencial americana, com a vitória do Donald Trump em 2016, acabando com todos os prognósticos e apostas políticas dos institutos de pesquisa e do eleitorado americano. Na análise dos métodos que permitiram a vitória dele por lá, percebeu-se que os dados pessoais dos indíviduos nas redes sociais foram cruciais para estabelecerem perfis de convencimento (no caso dele) e de desmotivação (para Hillary Clinton, sua adversária).

Em 2017, os integrantes do MBL (Movimento Brasil Livre, com uma origem bem nebulosa após as manifestações de 2013), em conversas no Whatsapp, se mostraram interessados no uso dos instrumentos da Cambridge Analytica para influenciar as eleições em favor do João Dória, assim como influenciaram as eleições americanas e o Brexit na Inglaterra. Segue abaixo o relato:

“No dia 16 de agosto, quando comentavam sobre a possível trucagem engendrada pela Rússia nas eleições dos Estados Unidos, um participante teclou sobre a consultoria política Cambridge Analytica, que teria usado bases de dados disponíveis na internet para influenciar a eleição de Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia. Mesmo diante da postura cética de alguns membros, o participante enfatizou: ‘Isso é muito sério, gente. E podem ter certeza que vai ser usado aqui em 2018. Só espero que o Doria ja tenha fechado contrato de exclusividade com a Cambridge analytica [grifo meu].Rss.'” (Reportagem da Revista Piauí, em 03 de outubro de 2017, sob o título “O Grupo da Mão Invisível”).

O que temos em uso são os nossos dados pessoais fornecendo um campo de informações tão específicas, que está sendo possível elaborar nossos perfis de maneira muito fidedigna. O campo da manipulação nas redes sociais é uma mina de ouro, no qual a extrema direita está nadando de braçada. Influenciar a nível de consumo é apenas um dos braços mais “éticos”, mas é nítido que o ideal é utilizar as redes sociais, que deixaram há muito de serem interfaces da realidade para serem praticamente a realidade-em-si, para manipular as vontades, desejos e ações dos indíviduos de maneira bem perigosa e muitas das vezes, contrárias ao seu real interesse.

Costuma-se pensar a nível de senso comum que as redes sociais são como as relações pessoais, como se fossem algo direto, mas a grande questão é o intermediário que quase nunca é citado, e que busca a cada momento obter mais informações sobre as nossas atividades e tendências, afim de não apenas antever os nossos passos e atividades, mas também usá-las, sejam para atividades comerciais ou para uso político, como temos visto.

Nisto, entra o fenômeno bolsonaro. As táticas utilizadas pela militância do candidato são extremamente semelhantes ao do presidente americano, com perfis falsos com o intuito de influenciar um conjunto de pessoas a partir de suas vontades e inclinações. Como eu havia dito em um outro post, a verdade passa a ser apenas mais uma versão num mundo de fake news, e as possibilidades de multiplas versões sobre os fatos – assim como sua negação – e a veiculação sistemática destas versões faz com que não se questionem os pressuspostos, tampouco a conduta do bolsonaro. Não importam as múltiplas provas contrárias à sua conduta, já que a multiplicação das versões que lhes são benéficas sobressaem sobre as outras. As correntes no Whatsapp são exemplos nítidos deste fenômeno.

Algo que me chamou a atenção durante a campanha e que pude entender com os escândalos da Cambridge Analytica foi a ausência de material de campanha deste candidato nas minhas redes sociais. Comecei a me questionar o por quê de tantas pessoas famosas, e celebridades declararem apoio imediato no candidato. O que recebi foram materiais de combate à sua pessoa e à sua candidatura. E algo nítido é que estas duas redes de informação não se intercambiam. As bolhas informativas são cada vez mais sólidas e rígidas, e dado a importância das redes sociais como veiculadoras de informação, há um hiato no lugar comum, já que este foi esfarelado em perspectivas da realidade a depender do perfil do indivíduo. A polarização política foi apenas intensificada por este método, já que se perde espaços de contato, tanto na diversidade das pessoas quanto nas fontes e conteúdos das notícias.

Estamos brigando com parentes, amigos, entre os nossos familiares, por conta sobretudo de um ardil que tem influenciado o comportamento de milhões de pessoas ao redor do globo. Há pessoas que nitidamente sabem o que estão fazendo por se sentirem em uma certa “revanche” contra os avanços sociais e políticos da última década, e que viram na ascensão de negros, mulheres e lgbts um ataque ao seu direito manifesto de ser hegemônico. No entanto, o espectro de apoiadores de bolsonaro inclui exatamente quem ele não tem o menor apreço, e isto deve ser questionado. Vemos perfis que seriam alvos de suas políticas restritivas e bélicas defendendo-o de maneira acrítica, quase que numa perspectiva moral. No meu entender, isto tem mais a ver com a rede de informações que esta pessoa está vinculada do que exatamente uma falha de caráter. A propaganda foi elevada a um nível de micro-detalhe, o que a torna ainda mais perigosa. Cabe mais do que nunca o diálogo com aquele que amamos e conhecemos profundamente os príncípios. A virtualidade do mundo permite um excesso de notícias que tem nos afogado em desinformação. Estamos cada vez mais analfabetos virtuais e isto tem fortalecido ideais mais cruéis.

A big data definiu esta eleição, seja qual for o resultado do dia 28 de outubro. Temos visto com frequência o vazamento de informações sigilosas dos usuários do Facebook, além de falhas na segurança do Twitter, entre outras. O acesso ao nosso comportamento é uma leitura poderosa do que pensamos, de nossos anseios e não parece haver freios eficazes a estes usos. A união européia, capitaneada pela alemanha já cria uma legislação mais rigorosa sobre esta finalidade dos dados e do acesso dos usuários sobre eles, e nos estados unidos o escandâlo da eleição do trump ensejam novos olhares sobre as redes sociais. E no brasil? Apesar dos nossos dados não serem tão disponíveis como nos estados unidos, a facilidade com que se interfere e manipula as ações dos usuários coloca um horizonte ainda mais sombrio para o futuro. Quem souber pagar à agência certa, leva o país inteiro. Pouco importando se falta credenciais para o cargo.

Por Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), em 17 de outubro de 2018.

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link da reportagem: https://piaui.folha.uol.com.br/o-grupo-da-mao-invisivel/

O Horror também educa…

Seguindo com o mesmo tom nas análises sobre as eleições de 2018. O ódio e a extrema polarização é a tônica.

O nível de ódio ao qual estamos vivendo, só uma experiência traumática desativa. Vemos as pessoas falando de bala, que vai matar, mas não sabem o que é a real agonia, o que é o Horror. Tem coisas que só a dor pode fazer, que só a dor pode educar. Não há política pública, não há educação, não há negociação. É como algo consumido pelo fogo: ou vira cinzas ou se torna imprestável.

Aos que tem esperança de diminuir os níveis de violência por meio do voto, gostaria de exemplos históricos neste sentido. O apaziguamento só se dá dentro de uma arena no qual há opções que jamais serão utilizadas. Este nível foi ultrapassado.

Aos meus, sobreviver vai se tornar mais custoso, não importa quem seja o eleito. Se o bolsocrazy vencer, o faroeste, à caça indiscriminada vai tá valendo, então trate de se cuidar por todos os meios necessários; se Haddad ou Ciro vencer, os correligionários do bolso ainda estarão ativos, numa pegada permanente de mobilização contrária ao governo instituído, o que em termos políticos e econômicos, nos coloca em uma situação de extrema vulnerabilidade. A negociação colocaria o governo muito mais inclinado à barbárie pra obter apoios.

Por isso, se você luta, intensifique seus treinos; Se não, procure algum meio de manter-se alerta e em segurança.

Procure meios reais de se proteger. Nossa carne é a mais barato do mercado desde sempre e pro próximo período, a desvalorização vai se intensificar ainda mais.

Que façamos que ela seja dura, mas difícil de engolir e digerir.

Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 04 de outubro de 2018

Quem abraça nossas dores?

Creio que este momento político me fez muito azedo ou pessimista. Ou ambas as coisas.

Eu entendo e compartilho de boa parte das manifestações contra os ataques fascistas, mas não consigo comprar a efusividade, a trilha sonora do “bem x mal”.. Eu olho, a partir da minha visão de mundo, e vejo nós pretos, nos mobilizando pra estar nos lugares, nos espaços organizados por outros.

Este movimento #Elenão é importante pelo que se evoca, pela não perda de direitos, pelo respeito à dignidade das pessoas e minorias políticas, mas na minha mente sempre vem os questionamentos sobre sempre estarmos – por sermos os mais vulneráveis – na disposição, nas trincheiras, na linha de frente (guerra do Paraguai é escola) mas entendam: Isto é importante porque os brancos acharam importante. Este movimento teve a dimensão que teve porque eles tomaram pra si o combate ao fascismo, porque isto lhes afeta sobremaneira.

Estamos juntos, mas as especificidades não são as mesmas. O fascismo não começou com o bolsocrazy. Não no nosso lombo. E os ecos sobre o tratamento aos nossos corpos e vidas tão aí em fartas provas, à direita e à esquerda, e as movimentações sempre foram tímidas.

Mas nos ataques à democracia, no que se concerne como geral – aí entendamos os direitos das pessoas brancas sendo postos em risco -, se enuncia uma perda de direitos geral, de todas as camadas, como se nessa média as perdas de todos fossem equivalentes. E nessa epifania, grassa o discurso generalista mesmo em meio às diferenças, quase como de uma democracia racial, de todos irmanados com todos. É quase um cheiro de festival, de uma esperança frente ao fascismo. Mas esperança pra quem? O megafone chamando atenção aos riscos e violências não parou por um só minuto desde a década passada.

A dor das pessoas brancas é é colocada como uma dor nossa, e a nossa dor é o que pra eles? A nossa especificidade é só nossa, a especifidade deles é universal. A lógica é a mesma de sempre, junto com os papéis de cada um.

Nós parecemos reservistas. Nos convocam no que parece o ataque à pátria e nós servimos (palavra bem a calhar). Vamos por nós, e acabamos indo por todo mundo. Fortalecemos a organização, somos parte. Mas não somos o centro.

Nós não cansamos nunca de sermos margem? De ser apoio? Não há “risco do fascismo” para pessoas pretas, porque já vivemos sob o terror. E nesta campanha pra evitar a eleição do bolsocrazy, estamos lutando pra evitar que o risco do fascismo chegue aos outros. Minha leitura pelo menos, é esta.

Enquanto não nos organizarmos, as nossas necessidades sempre serão utilizadas (instrumentalizadas).

Tenhamos consciência do nosso papel. Sem organização, somos a massa, os que aderem, os que apoiam, mas os que estão sempre por própria conta nas próprias questões. Que o entusiasmo criado pelos interesses alheios (que nos afetam) seja o mesmo pelo que apenas nos afeta.

Obrigado Tati Ribeiro Nefertari e Zaus Kush pelo seus lúcidos posicionamentos acerca das movimentações políticas do momento.

Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares)

De ti, a ti…

Escapo a ti ao dormir, e a ti recordo ao acordar;

Em ti se amainam os desassossegos diários e intermitentes;

Para ti são os sorrisos contidos, aqueles que escapam pelas mãos;

Mas também são aqueles de lindo sorriso de marfim,

És o meu (r) encontro com o recôndito,

Não mais postergado a outras eras vindouras.

A ti, de ti, para ti só as emanações do sentimento arrebatado,

Que levam-me a um caminho que eu decidi trilhar, sozinho.. ou não..

Onde a importância do sentir é a realização máxima de uma felicidade

Nítida, lúcida, vivida e sem tantas amarras.

Descoberta que não é soltar-me de ti, mas para ti,

Para o suprarracional, de onde as respostas tem o seu simples valor

E onde o sentir tem a autoridade absoluta.

Aberto: como o abraço daquele ingênuo que teoriza utopias humanas.

Não que assim não esteja, mas só pela elevação.

Hoje, elevado e por ora, evoluído.

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Por: Thiago Soares (Tago Elewa Dahoma), fevereiro de 2012

Postado dia 21 de setembro de 2018…

Legislativo: o ator oculto nas eleições…

Nas eleições, todos os olhos vidrados na sucessão presidencial, e à raia miúda, pouca atenção aos legislativos, sobretudo o Congresso Federal. Quem de nós procura entender quais os mecanismos de eleição pra Câmara? Não se aprendeu nada após o “efeito Eduardo Cunha” e a virada de importância do Legislativo na gerência do país. Esse escroque mostrou como paspalhos numa panaceia conseguem acelerar ou trancar qualquer pauta, as de interesse próprio ou público.
As estratégias das esquerdas continuam pautadas no controle da máquina, ainda crendo que a distribuição do bolo (recursos e ministérios) entre a coligação satisfaz o apetite voraz da baixeza política no Congresso. Hoje eles sabem o poder que tem. Um impeachment mudou o padrão da relação senhorial entre Executivo e as casas legislativas. As fórmulas seguem o mesmo rito para uma temperatura e ambiente políticos completamente adversos dos encontrados nas eleições presidenciais anteriores.
A direita (lobby empresarial, rentista, agronegócio, bala, bíblia e outros tantos interesses) focam seus recursos nas eleições de deputados, pois podem ter um controle do mandato muito mais efetivo, e tendo o controle do mandato se direciona e pressiona as pautas, fortalecendo-as ou se colocando em contínua oposição. Em 2015, vimos o poder de bloqueio quando todas as medidas provisórias e projetos de lei enviadas pela presidente Dilma ao Congresso foram sumariamente barradas, gerando um “apagão” na condução do país.
Olho as esquerdas e a dúvida sobre a governabilidade caso conquistem o pleito presidencial ecoa cada vez mais forte. Uma ligeira impressão que pouco se aprendeu com um capítulo tão intenso na história recente do país.
O Legislativo deixou de ser apenas o lugar das negociatas parlamentares e bravatas. Desde 2015 tem fortalecido o seu poder como um efetivo player no cenário político decisório, e a maneira com que os pólos ideológicos em disputa tem se comportado frente a importância cada vez maior dessas casas tem marcado o sucesso ou fracasso político com relação às tomadas de decisões acatadas ou completamente rechaçadas.

Utopia do simples: entre o pragmatismo e a sobrevivência.

Texto escrito em 2016 e atualizado em 2018..

O pragmatismo é a moeda corrente que as pessoas pretas tem utilizado pra fazer suas trocas, no que podemos dizer, miúdas quando em contato com pessoas não-negras. Ando pensando não apenas a questão estrutural, mas principalmente em como o pragmatismo, que podemos muito bem chamar de “princípio da sobrevivência”, baliza muito das nossas ações e reações, sobretudo quando a possibilidade de perder alguma conquista se depara no horizonte.

As posses são poucas, e as conquistas, quando perdidas, nos calam fundo na alma. As nossas utopias ainda expressam o básico: emprego decente, alimentação regular, envelhecer. E no que estamos dispostos a nos interditar e se sacrificar em milhares de situações pra que essa utopia do simples se realize. A não se queixar, a não explodir, a sorrir com o ódio nos olhos, a suavizar quando o amargo sufoca e se prende na garganta. A nossa sobrevivência nos adoece mentalmente.

Acho que esta sensação está em seu ponto máximo atualmente, com empregos na berlinda e desemprego entre os nossos soçobrando, com a sensação de “vou rodar” a cada dia que se levanta. Para aqueles que nada têm, vestir a camisa remendada àos pretos neste território, vem com um kit forçação: com o sorriso bonito (que tenta desmontar a visão de besta-fera), a roupa “apresentável”, para que a utopia do simples continue. Aquele ato racista que, se fosse levar às últimas instâncias, se teria todas as portas fechadas, ou uma chefia liberal, que trata como brincadeira a nossa humanização em jogo.

Quais os sacrifícios fazemos para não nos sentirmos descartáveis nesse jogo injusto? Qual o custo disto para a nossa saúde mental? Aquela frase “ser duas vezes melhor” ou “matar dois leões por dia” não deixam de ser figurações de nosso esforço pra não apenas nos sentirmos válidos, mas para que sejamos validados, positivados em qualquer ação que estejamos fazendo.

Se não existe o passado tampouco o futuro, o que fazemos senão sobreviver? Às vezes na percepção das pessoas guiadas pelo espectro da direita ou esquerda, os princípios políticos guiando a sua postura no mundo, de modo destemido – e porque não? – livre, enquanto que uma pessoa negra asseverar a existência do racismo no ambiente de trabalho lhe tolhe das compras do mês, lhe tolhe o ir e vir, lhe tolhe a possibilidade de ascensão.

A sobrevivência, essa utopia do simples e o que se faz pela sua manutenção, não deixa de ser também medo, e porque não, desesperança. O mundo melhor pra muitos de nós cabe em nossas crianças sadias, em teto que não desmorone, em casa de alvenaria. Saca que se o regime é democrático parece abstrato?

O que é considerado perda nunca é pouco pra quem nada tem.

Por Tago Elewa Dahoma, 24 de agosto de 2018.

UNÍSSONO..

A Voz.. A representação sonora do Emí, da nossa respiração, da nossa energia vital primeira ao estarmos em contato com o Aiye.

Nos emocionamos com músicas, com determinadas vozes, como a da insubstituível Aretha Franklin (descanse em honra). Mas não tem voz mais bonita do que a do coro, a união das vozes em uníssono, cantando com emoção, com fé, em retribuição de amor.

Por isso eu amo as vozes cultuando os deuses. Cada qual em sua denominação ou fé, mas falo do que me emociona de maneira profunda.

Na Voz em uníssono, embalados em fé e amor ao que lhe é mais íntimo, mais Sagrado, eu vejo uma das manifestações dos Deuses. É na energia inspirada e expirada dos cânticos que eu sinto o pulsar da Vida, sinto o amor em sua forma vibracional e encarnada.

Sou um outro ser quando escuto, quando canto e quando sinto. Sinto-me parte do Todo, pois deixo de ser carne pra tornar-me energia em ressonância.

Que louvar em conjunto sempre me leve a este local de transcendência, no qual eu me torne Imensidão, e por assim dizer, Sagrado e Divino.

Tago Elewa Dahoma, 17 de agosto de 2018.

“Jesus te ama viu, moço?”

O que mais falta nessa fala é amor. É ódio travestido de preocupação. As vestes brancas numa noite bonita, a alma ainda leve ao sair do candomblé, feliz pelo (re)nascimento de um amigo muito querido. Ao fim da ladeira, três mulheres, das quais consegui observar apenas duas. A terceira, como me pregando uma peça, diz a dita frase. “Jesus te ama viu, moço?”.

A minha resposta ao que foi enunciado não importa. A raiva e a dor já estava instalada pela violência cometida. Dói porque traz em si a perversidade do racismo brasileiro, quando quer atingir fingindo inocência. Quem escuta sem ser do axé não vê nada demais, até diria que foi um gesto fraterno; para mim, foi o gatilho emocional que acessou um campo enorme de informações e sentimentos mistos: a armadilha cristã em Áfrika, ao dizer que as divindades cultuadas no Continente-Mãe são o mal e pela necessidade da salvação na renúncia da fé dos pais e avós; a subserviência a um tipo de “amor” e relação com o sagrado que não me contempla, mas que na mente destes cristãos, me serviria; a total ojeriza à minha manifestação de fé, traduzido em minhas vestes brancas, motivo para a frase dessa “cristã”.

O racismo tem dessas artimanhas irracionais. Tarde da noite, um homem negro na rua. Geralmente, o medo seria o normal, o atravessar de calçada, se afastando do “perigo”. No entanto, o ódio às insígnias afrikanas que eu carregava deu impulso para ação, para atacar, de maneira sutil: como um conselho, como um chamado, como um alerta. Uma fala entremeada por medo, quase se escondendo, mas ainda assim, feita sem maiores pudores. É uma noção de auto-importância descabida, como se eu fosse um jarro com água impura, das qual eles querem trocar por líquido límpido. A única água realmente pura é a que eles dizem ter, mesmo que a minha me sacie.

“Jesus te ama” é uma maneira aparentemente inocente de dizer que não importa sua fé, se ela te dá suporte emocional e espiritual, se te permite o auto-conhecimento, se fortalece teus elos comunitários, aprofunda seus conhecimentos sobre a humanidade e sobre o Divino, nada disso importa. A fala é apenas a ponta de um iceberg profundo que visto em toda a sua magnitude, permite apedrejamentos, discriminação dos mais diversos níveis, invasão e queima de terreiros e no seu ponto mais crítico, assassinatos. A base conceitual, filosófica e religiosa é a que valida todas essas ações doentias. Auto-centrada e invasiva, incapaz de conviver com o Outro, porém prontamente mais mordaz  e persistente quando este Outro é a representação da fé e espiritualidade afrikanas em corpos pretos.

A pergunta que cabe é como eu posso ser tolerante com este tipo de atitude? Como levar na esportiva algo que é feito pra me ferir? Seria responder “Exu também te ama”? Mas não tem como eu misturar Exu como resposta ao ódio que senti por aquela moça. Eu amo Pai Exu, provavelmente mais do que aquela moça deve amar Jesus, já que não utilizo o meu sagrado como laço de gado ou truque aos outros. O meu sagrado não é rede de pesca jogada a esmo pra catar nada nem ninguém.

As nossas divindades dançam, comungam conosco, se alegram, se fartam e se emocionam em nossa presença. Sentimos seu afago, seu toque e a vibração de sua presença por intermédio de seus descendentes em terra. Isto certamente abala as certezas de quem não sabe ver Deus em manifestações tão vivas, que só lhes faz sentido associar o que não compreendem ao mal pra lhes dar segurança da própria crença, da propria fé. O cristianismo destas pessoas é oco, pois permeado por medo e receio da vivacidade do que o universo afrikano evoca e produz.

Não acredito em credos tão vazios, que só se sentem completos e seguros quando ocupam sozinhos o coração e mente das pessoas. Tampouco acredito em um céu ou em um deus que prefira a minha infelicidade ao ter de cultuar algo que nada diz sobre a minha história e a história dos meus ancestrais. Um deus a fórceps sobre a bandeira do amor. Nada mais condizente com a trajetória deste cristianismo belicoso, com seus milhões de vítimas espalhados pelo globo.

Não sei a quem Jesus ama. Se o dito na bíblia ou dito pelas bocas de tantos hipócritas .Se levarmos em consideração as ações destes cristãos tão certos de si e de sua fé e tão cheios de medo e rancor, Jesus não lhes ama os próprios parentes, os vizinhos, os antepassados ou os que ainda estão por vir, pois não ama ninguém que discorde da visão estrita do que seja amor. Um amor questionável, que mais mata do que salva. Que mais condena do que fortalece e acarinha. Mais uma vez, fazendo jus à caminhada dos povos brancos-cristãos ao longo dos séculos. A bíblia como espada, baioneta, tiro e forca.

Não era amor nas palavras daquela mulher. E mesmo se fosse, eu rejeitaria. Um amor desse não difere de grilhão e de chibata, e destes castigos punitivos eu já nasci farto.

Por Tago Elewa Dahoma, 15/07/2018…

A musicalidade preta e a sua representação audiovisual

Ver um gênero puramente preto ser tomado pela indústria é ver a transformação em direção ao embranquecimento em diversas etapas: a primeira é a mais fácil, pois se transforma os ídolos/musas. Como boa parte das expressões são feitas por homens, as mulheres símbolo do afeto carinhoso tornam-se brancas, fortalecendo a mulher branca como o ideal de feminilidade, a parceira ideal.. É simplesmente a continuação de um racismo secular (no caso brasileiro), agora nas novas mídias.

segundo passo é tornarem brancos os emissores do gênero: basta vermos como no final dos anos 1990, houve tentativas com o pagode paulista, com o pagodão baiano e mais atualmente, com o cenário do rap e do funk. No caso dos dois últimos, os expoentes – ou pelo menos os que lucram mais – não são pretos.

A música passa por várias transformações, as quando vamos ao visual, à “encarnação” dos sentimentos, dos desejos e vontades, há uma capa branca, um invólucro, sobre um conteúdo fundamentalmente preto.

Como o som tem origem, mas não tem rosto, a possibilidade de moldar as nossas percepções em direção ao padrão brancóide é uma máxima na sociedade brasileira.

A musicalidade e letras como manifestações de nosso desejo e sonhos foi e continua sendo capturado, rumo ao áureo e o cândido.

Ainda os figurantes de si mesmos, mesmo que superficialmente protagonistas nas telas e clipes.

Ódio, necropolítica e Tea Party tupiniquim: a receita eleitoral para 2018

                A opinião do recém-empossado governador de São Paulo, Márcio França sobre a polícia e sua ação sobre o episodio da PM que reagiu a uma tentativa de assalto matando o sujeito, me lembrou de um texto escrito em 2015, já com os sinais da grave crise política e de uma radicalização do ódio em forma político-eleitorais nos discursos e ações dos postulantes a cargos na política nacional.

               Impressionante como estamos parecidos com os Estados Unidos. Há alguns anos, uma parcela do eleitorado americano não se sentia representada pelos partidos, pelas representações formais, e passaram a se movimentar, de maneira difusa pra influir nos rumos da política americana. Esse movimento foi chamado de Tea Party. Irrompeu de tal forma pros lados de lá que forçou o pêndulo pra posições mais conservadoras dos partidos principais. Perderam força, mas deixaram um rastro de retrocesso político em sua passagem retumbante.

           Vivemos um momento muito parecido. Jair Bolsonaro é a nossa Sarah Palin. Ambos estúpidos, cristãos politiqueiros, mas com maior risco por estas bandas: a visibilidade que o Bolsonaro tem tido, o coloca como um presidenciável com chances. E dado o clima de medo/ódio ao qual estamos vivendo, ele parece muito como um novo Collor, pra salvar as classes médias e pobres iludidas dos “perigos” morais e sociais que estes tempos tem proporcionado a frágil sanidade e intenso bombardeio midiático destes estratos sociais.

               Estamos a um passo de um “Tea Party” brasileiro. O ódio irrompeu e contaminou o ambiente político, mais afeito à hipocrisia e demagogia, mas sem arroubos. Vemos hoje a aglutinação de um espectro político sem rosto, no qual erradamente colocamos o PSDB como cabeça. O PSDB está tentando capitalizar essa força política sem pai nem mãe, mas não apenas o PSDB. Vemos este discurso se espraiar por outras siglas, que apesar do fisiologismo brasileiro, tiveram pautas mais populares como o PDT e o PSB. A busca por votos tem exacerbado a retórica belicista dos partidos e tem se seguido o mesmo script já formulado, com as mesmas falsas soluções já conhecidas.

             Esse grupo, que se enxerga nos Bolsonaros e Felicianos da vida, já demonstrou sua força ao puxar o pendor político para um espectro mais doentio, visceral no ódio, no qual tudo é permitido para que as regras se modifiquem ao sabor de suas paixões e vontades.

           No meu entender, isso não é o problema maior. A elite branca no Brasil e no mundo sempre mudaram as regras quando viam que tinham riscos de perder privilégios. A História está cheia destes pontilhados. Mas o que surpreende é a adesão dos mais pobres. Uma disposição anti-política ativa, num endosso preocupante raiva canina da elite. Hoje o Tea Party tupiniquim comunga de pobres da quebrada, daquele que acorda as 5 da manhã, o gladiador do altar da Universal e o rentista que num sabe o que é calo na mão.

             Apesar de várias quebradas não terem feito panelaço, o panelaço mental tem sido imputado pela mídia. Tão levantando uma lebre que depois num vão aguentar o repuxo, e pior vai ser pros de sempre: pros pretos. Esse clima de ódio político não tá dissociado dos eventos sociais aos quais temos passado. Fiquemos ligeiros.

Edit: Matéria com o posicionamento do governador.

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/quem-ofender-a-policia-militar-corre-risco-de-vida-em-sp-diz-governador.shtml