“Arrastão eleitoral”: possibilidades para um segundo semestre crítico

*Antes de tudo, já aviso que não é um texto curto. Foi um texto escrito no final de abril e atualizado para os últimas notícias sobre as eleições. Infelizmente, o desenho tem sido cumprido a risca pelo BO no que há de pior na política.

Eu escolhi este termo, “arrastão”, porque quem vive em grandes cidades, centros, sabe que arrastão tem a ver com uma ação de banditismo em que um grupo passa assaltando os transeuntes de forma rápida e intensa. O que vivemos politicamente é na forma que o governo federal gere o país não está muito longe disto, mas o que temos vivido são movimentos mais lentos, não com a força política necessária para fazer o que se pretende agora.

O momento e a construção política feita no Congresso, com o Centrão (partidos de pouca expressão ligados à características fisiológicas e não ideológicas, muito centrados em ter ganhos econômicos em troca por apoio político) apoiando e controlando as ações do governo Bolsonaro, mostram que os riscos as eleições e a uma eventual troca de governo estão com riscos graves de não acontecer.

O governo bolsonaro está agindo em completo desespero para a manutenção do poder, por todas as vias: de um governo dito liberal, para um governo que não cumpre as premissas que o liberalismo preconiza; tem tomado atitudes em que não há um sentido político específico, que não seja a própria sobrevivência.

E está sobrevivência é norteada pelo profundo desespero de fazer todas as ações de transferência de renda mas não desistir de sua base hidrofobica, o que impacta no seu desempenho eleitoral e na sua forte rejeição junto à grande parte dos eleitores. Não há ninguém que consiga vencer com uma rejeição acima de 60%. A performance de Lula junto ao eleitorado, mesmo com uma forte rejeição, também provoca tais pavores no atual pseudo-mandatario. As pesquisas eleitorais, mesmo com o atual crescimento do Bolsonaro nas últimas divulgacoes, mostram um teto para seu crescimento, enquanto Lula, com suas articulações (de sempre) ampliam seu arco de apoio para um possível governo.

Tem restado ao Bolsonaro tensionar as instituições democráticas afim de provocar alguma ruptura ou fissura do qual se possa se aproveitar para evitar a perda da eleição, é sua saída do poder. Nisto, tem atacado o STF de uma forma cada vez mais intensa, mas o que diferencia das outras vezes, é que a instituição tem produzido decisões que atacam sua base de disseminação de informações falsas, estratégia que o ajudou a ser eleito. Nisto, os principais articuladores dessa rede foram identificados com prisões sendo feitas e desarticulação de suas organizações.

É preciso entender o que está em jogo caso ele perca a eleição: os processos de rachadimha no gabinete de dois dos seus filhos além dos processos contra o atual presidente por conta das ofensas à deputada Maria do Rosário ganhariam celeridade em suas atuais instâncias, e sem a possibilidade de intervenção da família nas investigações. Estamos falando de desmoronamento.

Por isso, temos visto um presidente cada vez mais fisiológico, embora mantenha um discurso ideológico às suas bases. Não há materialidade no discurso bolsonarista, a não ser em pautas de costumes, com forte teor conservador. Como já disse em outro texto, Bolsonaro não quer entender de inflação, mas sim do controle dos corpos e do pudor alheio, sob uma falsa perspectiva cristã. O governo de fato, ele entrega a quem lhe der apoio político para impedir um impeachment, mesmo que isto sangre os cofres públicos.

Nisto, se colocam 4 horizontes de ação ao bolsonaro mediante as possibilidades eleitorais de outubro próximo:

1) Ganhar as eleições: a sua manutenção no poder lhe garante mais 4 anos de imunidade, de seu clã e a continuidade de uma destruição paulatina não apenas das instituições e do sistema político, mas das condições econômicas da sociedade brasileira. A inflação já está na casa dos dois dígitos, e não se enxerga medidas eficazes ou planos do governo em minorar o impacto junto à populacao mais pobre. As medidas relacionadas ao aumento do auxílio Brasil e subsídio à gasolina não dão conta da forte queda do poder de compra, além de provocarem um rombo fiscal que fará suar alguém com a mínima competência em gestão de política fiscal, mas isto não seria um problema ao BO, assim como não tem sido os 4 anos de profunda perdição política. O processo de lotação dos espaços de poder, que já havia ocorrido neste primeiro mandato, ganha também força neste governo, mais pautado pelo apoio obediente ao mandatário do que conhecimento técnico da área. Nem vou entrar numa análise sob os reflexos de uma continuidade sobre nossa política externa, já que a representação brasileira virou pó sobre o governo bolsonaro.

2) Golpe antes/depois das eleições: aumentar o atrito cada vez mais com as instituições, como o TSE/STF, no sentido de imputar ilegitimidade no processo eleitoral e acionar sua base de apoio, já excessivamente armada pelos decretos sobre circulação de armas, para atacar estas instituições, mas claramente, não se restringiria a estes. Aos demais partidos, sobretudo os de esquerda, seriam os principais afetados. A manutenção da legalidade democrática talvez fosse rompida, já que as FFAA não têm parecido fazer frente aos rompantes autoritários do presidente, mas endossando essa postura. O Exército é as outras forças merecem um capítulo próprio de análise sob o seu comportamento junto à presidência da República. Portanto, um golpe talvez não fosse totalmente rechaçado por todos os setores institucionais que compõem a República.

3) Perda das eleições e respeito ao resultado: Isso só aconteceria mediante a impossibilidade de dar um golpe, com perda do apoio institucional que tem. Ou seja, só com um recuo veemente das FFAA e de controle sobre os quartéis das polícias militares. No entanto, a falta de um golpe não significa mãos atadas, já que com a continuidade de uma base política no Congresso, seria possível o governo votar pautas bombas que tornariam muito difícil o próximo governo. Estejamos atentos aos projetos de não só aumentar o gasto, mas de driblar a COnstituição (do mal fadado Teto de Gastos) e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que virou um adereço sem valor nessa novela jairlesca. O STF poderia inviabilizar algumas dessas pautas, mas a depender da quantidade de Medidas Provisórias (que passam a valer assim que votadas) e o intercurso para sua suspensão, muito do estrago pode ser feito.

4) Uma campanha terrorista: Essa possibilidade está sendo desenhada desde que o atual mandatário tomou posse. A retórica da violência tem sido constante desde as eleições de 2014, mas que neste governo ganha ares de instrumento legítimo, com um endosso oficial do presidente e de seu clã, com transbordamentos nas ruas e fazendo vítimas. A extrema proteção ao presidente Lula desde que foi solto, e sua liderança nas intenções de voto, o colocam como alvo prioritário dos grupos apoiantes do Bolsonaro, o que coloca sua vida em risco. A necessidade de um colete a prova de balas no ato da Cinelândia, (RJ) ontem (07/07), além dos ataques com bombas recheadas com fezes mostram que foi feito um teste para apavorar quem defenda o petista e seu possível governo em 2023. Infelizmente, creio que este é apenas o começo desses testes, com a frequência destes ataques se intensificando e com a intenção sendo mais do que assustar, mas causar vítimas. As armas circulantes no Brasil com o decreto presidencial podem abastecer milicias políticas, que atuariam como uma polícia coercitiva para orientação do voto, assim como para provocar violência, balbúrdia. AInda não estou contando com estes grupos armados para 2023, e como seriam debelados num governo que tende demais a negociar.

Espero sinceramente que boa parte destes delírios escritos sejam apenas divagações, mas o meu temor aponta que não. Que o risco está cada vez mais iminente não exatamente de um golpe, mas de violência difusa e exarcebada, a cada momento em que a derrota dos bolsonaro fique evidente. Um rato acuado avança contra quem o persegue. Quem politicamente está mais acuado que Bolsonaro no poder hoje?

Que passemos por este segundo semestre como heróis e heroínas, para uma possível reconstrução dessa terra arrasada que tem se tornado o Brasil neste governo. Seremos imprencindíveis para o que virá, e como testemunhas para as próximas gerações do que está sendo este descalabro social. QUe não falhemos em nossa missão de retirar este governo e de impedir que algo semelhante se aposse do poder politico novamente.

Axé pra nós.

Escrito por: Thiago Soares (Tago E. Dahoma), 30 de abril de 2022 (atualizado em 08 de julho do mesmo ano).

O Horror ensina… a quem tem limites civilizacionais

Relembro aqui um texto que escrevi em 2018*, bem curto, em que dizia que a escolha dos brasileiros pelo Jair Bolsonaro como presidente talvez tivesse sido uma etapa em que todos, sofrendo em conjunto, poderiamos aprender com esta situação e demarcar quais seriam as linhas que jamais deveriam ser ultrapassadas novamente. Que na dor, como acontecido em diversos lugares ao longo da história humana, poderíamos pontuar um novo patamar civilizatório jamais ocorrido no pais. Eu, obviamente, estava enganado. O Brasil não é para amadores, e tem sido cada vez menos para sonhadores.

Aqueles que confiaram seu voto no Bolsonaro esperando uma recondução da crise econômica iniciada em 2014, advinda da crise política de 2013, deram com os burros n’àgua. Os mais pobres, que viram no navio furado a sua tabua de salvação, foram os que mais perderam com a total falta de gerência política e econômica que se tem história no país. Mas isto não quer dizer que os outros segmentos não tem sentido um sentido de devastação das próprias vidas e esperanças mediante um governo em que as propostas mais razoáveis, mais ordinárias, se transforma em um cabo de guerra e falta de coordenação mínima. Isto, sem falar nos casos de corrupção que atinge a todos os filhos do atual mandatário e mesmo sua esposa. O que fica patente é que a atuação presidencial tem sido cada vez mais dirigida a proteção de seus entes familiares, transformando a máquina estatal em um aparato político-jurídico de enfrentamento às mais diversas acusações.

A questão do uso da máquina pública para fins privados, ou o conhecido peculato, ganha contornos ainda mais graves diante do que tem sido a gestão federal com relação à pandemia do Covid-19. A União, na figura do presidente e dos ministros do seu entorno, tem sido a principal sabotadora dos esforços de combate ao vírus, seja com a desqualificação das vacinas como medidas de combate ao vírus, seja por meio da burocracia nos repasses de recursos de combate à pandemia aos estados e municipios, ou ainda por uma conduta pessoal do presidente de simplesmente diminuir a gravidade da doença e do número de mortos, produzir aglomerações com ataque às medidas de distanciamento social e ao uso de máscaras ou dos ataques narcísisticos sobre as medidas emergencias tomadas pelos prefeitos e governadores, frente ao colapso do sistema nacional de saúde. Ele é efetivamente um semeador de óbitos, um facilitador do estado de caos sanitário ao qual todos, sem exceção, estamos submetidos neste momento. No entanto, ainda sim cabe a pergunta: com tanto caos, mortes e inanição governamental, por que ele não é retirado do poder? Por que ele ainda tem apoio?

No meu entender, porque o país historicamente é conivente com o Horror. Podemos estar ligeiramente incomodados com sua face crua, mas a sua presença oculta sempre foi abraçada como parte do caldeirão cultural nacional. Não é apenas a escravidão que produziu uma mentalidade de subhumanidade para corpos negros, mas a leniência com a violência extrema à mulheres, povos indígenas e quilombolas, o entendimento sobre o sentido das cadeias, presídios e manicômios, a solidariedade aos outros que mais diz respeito a quem dá do que a quem recebe, aos linchamentos e enforcamentos de inocentes, com suas exposições em postes de luz. Temos sido um produto de aceitação do que deveria ser exceção como normalidade, onde este Horror à humanidade alheia tem sido uma marca subcutânea de nossas relações.

Os efeitos são nítidos: somos ao mesmo tempo anestesiados pelo excesso de violência sofrida e ao mesmo tempo somos tomados pelo sentimento de urgência da sobrevivência, que nos tira a solidariedade do campo público, a preocupação com o outro do nosso raio de ação. É uma lógica que permeia tanto ricos quanto pobres, mas por razões distintas: os primeiros, dentro da sua lógica de merecimento do melhor viver, duma idiocracia travestida de mérito, as vidas que lhes importam são as suas, pois a sua vida deve ser vivida em total liberdade, num sentido que as demais se apequenem ou sejam engolidas à sua vivência; aos últimos, escorchados pela falta de cuidado histórico, visto como peças (de carne, mecânicas, descartáveis), se recusam a abrir mão da nesga de prazer que a dura vida pode conceder. Se servem para produzir lucro durante esta pandemia, se enxergam no direito do gozo, mesmo que em ambas as condições o abraço à morte esteja mais presente. “Eu não sei se vou estar vivo amanhã”, dito por ricos e pobres, sendo o farol das ações arriscadas à própria vida e produzindo milhares de mortes diárias e muito mais dezenas de milhares de infectados.

Para pessoas pretas, o bafejo do vírus tem sido mais cruel: maior número de desempregados, mais impactados pelo fim do auxílio emergencial, maior número de mortos… As ações do presidente tem um efeito ainda mais macabro em nossas vidas e famílias, sendo que em muitos casos, por obra da aceitação das mentiras proferidas pelo mandatário. Fazendo um recorte de gênero, quantos homens pretos tomam a figura do presidente como a de um homem forte, que manda e é obedecido? Quantos reconhecem nessa falsa força (na real, muito medo) a verdade do que está sendo dito, e dilaceram a própria família, e a si mesmos, sendo as principais vítimas do Corona em 2020? Seja pela pobreza, falta de acesso e cuidado ou identificação positiva na figura do Bolsonaro, encampam o sonho de destruição presidencial das figuras descartáveis, simbolizadas numa necropolítica que “só vai ficar vivo quem merece”, quem não sucumbir à “gripezinha”. No não-dito, somos a carne que inunda os cemitérios e as covas rasas sem nome. Pois, quem é que tem que trabalhar para não morrer de fome? Quem tem de sair presencialmente para a economia continuar girando sobre nós? O brasil, nas palavras do Bolsonaro, é uma grande plantation em que o engenho deve continuar funcionando, sem pensar muito na quantidade de escravizados perdidos.

Com um cenário destes, qual é o limite? O Horror só é limite para quando enxergamos sua presença num estado de exceção, na suspensão do cotidiano e da normalidade, nos pondo em choque. Se o brasileiro se chocou alguma vez com a violência (à exceção de crianças brancas), ele a perdeu na memória em algum momento. Mas ouso dizer que a configuração da mentalidade brasileira, por baixa da alegria festiva, sempre teve a vivência do Horror como parte, companheiro de jornada, até para que se permitisse viver de maneira naturalizada. Às elites que há 4 gerações atrás mandavam caçar “negrinhos fujões” e açoitá-los, vêem no presidente a evocação dessa natureza senhorial, e a isto, nenhum vírus vale o preço.. Ainda mais se cumprir com o papel de higienização sóciorracial.

Paremos de buscar apenas nas fake news o descalabro civilizacional que temos vivido. O traço histórico-cultural que permitiu uma figura como o bolsonaro nos leva às caravelas, e a sua possível saída do poder, pode estancar uma sangria intensa, mas é preciso se perguntar o que queremos salvar. Se o DNA cultural brasileiro carrega tanto de bolsonaro, o que se coloca como limite civilizacional à humanidade vivenciada aqui?

A falta de empatia e de solidariedade humanizada não nasceu com o Bolsonaro, mas encerra nele sua maior expressão. Ou se busca este novo horizonte para as vidas no brasil – todas elas – ou a repetição desse moedor de carne é questão de tempo. E não precisaremos de uma pandemia para enxergar.

Por: Tago E. Dahoma (Thiago Soares), 21 de março de 2020.

Nota(*): Texto de 2018 escrito aqui no blog:
https://papiroindomito.com/2018/10/05/o-horror-tambem-educa/